A FESTA DO MONGE MALUCO
Música e outras coisas

A FESTA DO MONGE MALUCO



Dificilmente alguém passaria despercebido se seus pais o tivessem batizado com o curioso nome de Thelonious Sphere Monk. Se, além do nome incomum, esta pessoa conjugasse um talento invulgar ao piano, encapsulado em um corpanzil desajeitado, com uma personalidade errática, teríamos então um gênio ou um maluco. Thelonious conseguiu ser as duas coisas e com muita distinção: não apenas foi um dos maiores músicos, compositores e arranjadores do jazz como também foi um dos seus mais folclóricos personagens. Não é à toa que recebeu dos seus pares o apelido de Mad Monk – para isso, o indefectível boné e o cavanhaque algo desgrenhado ajudavam bastante.


Um homem que parecia habitar um universo todo particular, Monk tem assento cativo no Olimpo do jazz. Nas intermináveis noites do Minton’s, ajudou a criar e desenvolver o bebop, ao lado de Bud Powell, Charlie Parker, Dizzy Gilllespie e outros notáveis. Mais que isso, o Sumo Sacerdote do bebop expandiu sobremaneira as possibilidades harmônicas desse revolucionário estilo e sua obra adquiriu tamanha relevância ao fazê-lo, que não é exagero afirmar que o jazz teria outra feição se não tivesse sido retalhado e cosido, desconstruído e refeito, profanado e sacramentado pelas mãos tortuosamente hábeis do monge. A música de Monk é feita de silêncios e de sons, não o contrário.


São muitos os adjetivos a que se recorre quando se fala em Thelonious Monk. Genial, por certo é um dos mais utilizados e, por certo também, um dos mais adequados. Mas há uma infinidade de outros. Enigmático, moderno, excêntrico, destemido, irreverente, hermético, subversivo, complexo e imprevisível são outros termos capazes de adjetivar a sua personalidade ímpar. À sua música, costumam-se atribuir as seguintes qualidades: sofisticada, angulosa, instintiva, assimétrica, apaixonada, transgressora, impermeável, cerebral, exuberante. Palavras que não farão o menor sentido se você nunca tiver escutado a emocionante “Round About Midnight” e a enternecedora “Ruby My Dear”, duas de suas mais sublimes composições.


Pouquíssimos compositores na história do jazz conseguiram construir uma obra tão pessoal e tão bela quanto o Monge. São de sua lavra gemas preciosas como “Well, You Needn’t”, “Epistrophy”, “Straight, No Chaser”, “Bemsha Swing”, “Pannonica”, “Ugly Beauty” e “Criss Cross”. Interessante notar que, embora tenha uma discografia extensa, Monk não compôs nem uma centena de músicas. Seus álbuns se caracterizam por interpretações muito particulares de standards do jazz e da canção americana e por incontáveis releituras da própria obra. Não é à toa que, instado a declinar quem seria a sua maior influência, ele tenha respondido ao atônito jornalista: “Eu, naturalmente”.


Os maiores músicos do jazz pagaram tributo a Monk, seja gravando suas composições em seus álbuns regulares (e aí a quilométrica lista vai de Bud Powell a Keith Jarrett, passando por Bill Evans, Sonny Rollins, John Coltrane, Miles Davis, Tommy Flanagan, Gerry Mulligan, Donald Byrd e uma infinidade de outros), seja dedicando discos inteiros à sua obra, como é o caso de Arthur Blythe, Barry Harris, Fred Hersch, Steve Slagle, Carmen McRae, Ellis Marsalis e seu filho Wynton. Há, ainda, o especialíssimo caso de Steve Lacy, que gravou dezenas de discos apenas com músicas do pianista.


Extremamente prolífico nos estúdios, Monk também possui uma discografia bastante numerosa, destacando-se os antológicos “Brilliant Corners”, “Criss Cross”, “Underground”, “Monk’s Music”, “Plays Duke Ellington” e “Misterioso”. Gravado entre 06 e 08 outubro de 1964 para a Columbia, “Monk” é merece uma atenção toda especial, embora não seja um dos mais incensados trabalhos do pianista. Aqui, ele deixa um pouco de lado o aspecto composicional (apenas três das sete músicas são de sua autoria) e dedica-se a fazer emocionantes releituras de standards da canção americana, sempre à sua maneira bastante pessoal.


O intérprete aqui se sobrepõe ao autor, com um resultado extraordinário. E os acompanhantes são um atrativo à parte – o sensacional Charlie Rouse no sax tenor, Larry Gales no baixo e Ben Riley na bateria, todos velhos companheiros do Monge em seus périplos por estúdios e palcos mundo afora. Tinha tudo para dar certo. E deu!


Uma das maiores qualidades do disco é desmentir com veemência idéia (ridícula) de que Monk seria um grande compositor, mas um pianista de limitados recursos técnicos (é, a mente humana parece ter uma inesgotável capacidade para inventar bizarrices) – argumento contra o qual teve que se debater durante boa parte de sua vida. Tome-se, por exemplo, “I Love You (Sweetheart Of My All Dreams)”, de Irving Berlin. No único solo do álbum, Monk usa e abusa de sua técnica invulgar, concebendo acordes impossíveis e harmonias absurdamente belas, reconstruindo a canção como se fosse sua, sem abandonar a confessa influência do estilo stride piano popularizado por James P. Johnson, uma de suas influências mais visíveis.


O quarteto demonstra uma coesão que somente muitos anos de estrada são capazes de agregar. Em Liza, antiga composição os irmãos Gershwin, a estrutura harmônica é de tal modo subvertida pelos quatro que é difícil acreditar, em algumas passagens, que não se está diante de uma obra de Parker ou de Powell. Detalhe: a música foi composta nos anos 20, décadas antes da invenção do bebop. Tocada com um certo grau de reverência, “April In Paris” é um dos melhores momentos do disco, desde à introdução fabulosa, a cargo de Monk, ate os belíssimos solos cometidos por Rouse e pelo pianista. A bateria de Riley, sutil como o farfalhar das asas de uma borboleta, também merece atenção, ajudando a criar o clima altamente introspectivo que pontua a execução.


“Children’s Song”, uma composição monkiana das menos conhecidas, é uma belíssima colagem de temas infantis, assemelhada às nossas cantigas de roda, com uma aparente simplicidade rítmica e harmônica. Dá vontade de sair por aí assobiando a sua pegajosa melodia! E a bateria de Riley, mais uma vez, funciona como o elemento catalisador entre a percussividade metálica do piano líder e a encantadora doçura do saxofone de Rouse. “Just You, Just Me” é outro clássico da canção americana, ao qual a criatividade do monge se encarrega de imprimir um novo sentido harmônico. O baixo dialoga com muita fluência com os demais instrumentos, que desfilam com extremada segurança, ancorados pelas mãos firmes de Gales.


Na delicada “Pannonica”, dedicada à grande amiga e mecenas, baronesa Pannonica Rothschild de Koenigswarter, emerge o lirismo nada comedido do pianista, com direito a uma execução primorosa de Rouse, que usa o tenor com a mesma elegância de um Paul Desmond no sax alto. A presença do blues – elemento fundamental na formação de Monk – é facilmente perceptível, sobretudo em razão da excelente performance do baixista Larry Gales. Por fim, “Teo” é mais uma homenagem do pianista, desta feita ao produtor Teo Macero. Um bebop dissonante, tipicamente monkiano, cheio de ondulações e variações climáticas, bastante sinuoso e escorregadio, mas sem perder de vista a decantada influência do blues. Um álbum fundamental, capaz de agradar tanto ao neófito quanto aqueles com maior milhagem no maravilhoso universo do Mad Monk.

O excêntrico pianista, abatido por sucessivas enfermidades físicas e mentais, abandonou os estúdios no início dos anos 70. Ainda fez alguns esparsos concertos dentro do projeto Giants Of Jazz, ao lado de Dizzy Gillespie, Al McKibbon e outros, mas em seguida deixou a música de maneira definitiva. Isolou-se da família e dos poucos amigos e recolheu-se à casa da sua fiel protetora Nica de Koenigswarter, em Nova Jersey, onde passaria os últimos anos de vida. O monge faleceu em 17 de fevereiro de 1982 e já de há muito não falava com ninguém. Não precisava. Sua música foi o veículo mais que perfeito para que ele – célebre pelo comportamento arredio e pela aversão às palavras – dissesse tudo o que precisava ser dito.



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