SAUDADE NÃO TEM IDADE
Música e outras coisas

SAUDADE NÃO TEM IDADE




O trompetista Warren Webster Vaché Jr. pertence àquela categoria de músicos denominada “saudosista”. E com muito orgulho, diga-se de passagem. Ele representa para o trompete, o que seu amigo Scott Hamilton representa para o sax tenor, ao promover o resgate de um estilo de jazz que muitos supunham morto e enterrado. Da mesma maneira que Hamilton, seu repertório está repleto de composições dos anos 20, 30 e 40, período em que a grande canção norte-americana vivenciou o seu apogeu criativo.


Embora sua maior referência sejam as orquestras da Era do Swing, ele não despreza o rico legado do bebop e consegue transitar pelas incandescentes veredas do jazz moderno com muita autoridade e desenvoltura. Essa capacidade de interagir com o jazz clássico e o jazz moderno inspirou o crítico Peter Straub a escrever: “Em termos de trompete, Warren conseguiu se estabelecer em um território dos mais satisfatórios: no exato ponto em que Bunny Berigan se encontra com Clifford Brown”.


Dono de um conhecimento enciclopédico da história do jazz, versátil como poucos companheiros de ofício e extremamente talentoso, Vaché tem sido uma figura importante no cenário jazzístico dos últimos 35 anos, embora tenha muito menos visibilidade que outros músicos da mesma geração como, por exemplo, Wynton Marsalis, Terence Blanchard, Tom Harrell ou Nicholas Payton.


Warren nasceu no dia 21 de fevereiro de 1951, em Rahway, Nova Jersey. Desde bem pequeno o garoto foi exposto ao fabuloso universo da música, pois seu pai, Warren Vaché Sr., era contrabaixista amador e sua mãe, Madeline Sohl, trabalhava como secretária na Decca Records. Seu irmão mais novo, Allan, também enveredaria pela carreira musical e se tornaria um grande nome do clarinete.


O pai era apaixonado por jazz e tocava na banda da New Jersey Jazz Society, além de dar aulas de música e escrever regularmente sobre jazz em um periódico local, mas ganhava a vida como vendedor. Warren Sênior era um tradicionalista, apaixonado pelo jazz clássico e não gostava nem um pouco do jazz feito após a década de 30. O filho recorda que quando chegava em casa com um LP de Miles Davis ou Clifford Brown ele e o pai protagonizavam acaloradas discussões sobre a qualidade artística dos jazz moderno.


O Warren mais velho era tão radical em suas preferências que costumava dizer que o sax tenor não deveria ter lugar em um verdadeiro conjunto de jazz. Mas, de qualquer modo, o patriarca sempre foi um grande incentivador a carreira musical dos filhos e costumava levá-los para assistir às apresentações da sua banda. Curiosamente, os primeiros instrumentos a que Vaché Jr. se dedicou foram o contrabaixo e o piano, que logo foram trocados pelo trompete.


O pai lhe deu as primeiras lições do instrumento, mas o garoto, que tinha apenas sete anos quando começou o aprendizado, revelou-se um verdadeiro prodígio, tanto é que não demorou a fazer parte da orquestra da escola. Após a conclusão do ensino médio ingressou no Montclair State College, em Nova Jérsei. Para sua decepção, o ensino ali era voltado exclusivamente para a música erudita e o jazz não era visto com bons olhos no sisudo ambiente acadêmico da época.


Para não perder o contato com o jazz que tanto adorava, ele foi estudar com o trompetista “Pee Wee” Erwin, oriundo das big bands de Benny Goodman e Tommy Dorsey. “Pee Wee” Ervin é uma figura das mais relevantes na trajetória de Vaché, não apenas como professor mas também como amigo e conselheiro. Todos os dias Vaché percorria os cerca de 50 quilômetros que separam sua cidade natal de Teaneck, onde Ervin mantinha uma loja de instrumentos musicais e dava suas aulas. Segundo o pupilo, seu mentor, além de ser um excelente músico, era “tudo o que eu gostaria de ser: um trompetista profissional capaz de tocar jazz mas também um grande conhecedor de outros estilos musicais”.


No início da década de 70, Warren integrou algumas bandas de Dixieland locais e chegou a se mudar para Detroit, em 1972, a fim de se juntar à banda de Billy Maxted. A experiência não foi das mais felizes, pois ele era obrigado a assumir, também, o trombone de válvula, instrumento com o qual não tinha a menor intimidade.  O emprego durou apenas três semanas e ele preferiu se dedicar apenas ao estudo musical.


Em 1974 graduou-se em música e logo em seguida se fixou em Nova Iorque, em busca de melhores oportunidades profissionais. Um de seus primeiros empregos regulares foi na banda do clube Condonʼs formada por Herb Hall, Vic Dickenson, Bill Pemberton e Connie Kay. Warren também atuou como freelancer, tocando em orquestras de baile e em alguns espetáculos na Broadway, incluindo o musical chamado “Dr. Jazz”, estrelado por Bobby Van e Lola Falana, em 1975.


Naquele mesmo ano, a New York Jazz Repertory Company, comandada pelo produtor George Wein, promoveu um espetáculo em homenagem a Bix Beiderbecke e coube a Vaché a responsabilidade de “interpretar” o lendário cornetista. Sua participação em especiais televisivos nas redes NBC e PBS acabou por chamar a atenção no concorridíssimo cenário musical da Grande Maçã.


O clarinetista Benny Goodman foi um dos primeiros a contratá-lo para a sua banda, que na época reunia uma verdadeira constelação de craques: Bucky Pizzarelli na guitarra, Hank Jones no piano, Urbie Green no trombone, Zoot Sims no sax tenor e Slam Stewart no contrabaixo. Com esse grupo, Vaché viajou pelo mundo e se apresentou, pela primeira vez, na Europa. Pouco tempo depois, Vaché estaria liderando seus próprios grupos. Seu primeiro trio incluía o pianista John Bunch e o baixista Phil Flanigan e manteve-se por muito tempo como atração do clube Crawdaddy.


Seu primeiro disco como líder foi “First Time Out”, gravado em 1976, para o pequeno selo Monmouth. Em seguida, assinou com a Concord, mas sua extensa carreira fonográfica também registra títulos pela Muse, Zephyr, Arbors, Jazzology, Chalenge, Audiophile e Nagel Hayer Records, por onde tem lançado seus últimos álbuns, incluindo o elogiado “2gether”, onde atua ao lado do pianista Bill Charlap e que foi indicado ao Grammy. Nos anos 70 e 80 foi um dos mais freqüentes integrantes da Concord Super Band.


Um de seus álbuns mais consistentes é o ótimo “Iridescence”, gravado em janeiro de 1981 e lançado pela Concord. Os acompanhantes são músicos de primeiríssima linha: Hank Jones no piano, George Duvivier no contrabaixo e Alan Dawson na bateria. O repertório é essencialmente composto de standards do cancioneiro norte-americano, com exceção da faixa título, de autoria do pianista. Nessa gravação, Vaché deixou o trompete de lado para usar apenas o flughelhorn e a corneta, instrumentos que domina com inquestionável autoridade.


Uma interpretação candente de “Softly, As In A Morning Sunrise” abre o disco em altíssimo nível. Trata-se de um saboroso acepipe musical, cuja levada cativa de imediato o ouvinte, que se delicia com a sonoridade refinada de Jones e o sopro caudaloso e intenso do líder, que nesta faixa usa o flugelhorn, instrumento de sonoridade mais arredondada que o da corneta. Os breves solos de Duvivier e Dawson são apurados e tecnicamente perfeitos, merecendo audição mais atenta.


Com um pezinho no blues e outro no dixieland, “Sweet And Slow”, de Harry Warren e Al Dubin, é um tema ao mesmo tempo alegre e nostálgico. O piano de Jones faz um delicioso mergulho nos primórdios da tradição jazzística, com muita classe e o som agudo e cheio de efeitos da corneta de Warren ajuda a transportar o ouvinte para as noites boêmias de Storyville. O trabalho do baterista com as escovas é um primor de delicadeza e senso rítmico.


Mantendo a mesma atmosfera descontraída, o quarteto apresenta uma versão bastante animada de “Between The Devil And The Deep Blue Sea”, tema de autoria de Harold Arlen e Ted Koehler e que integra o score do espetáculo Rhyth-Mania, de 1931. O entusiasmo dos músicos transparece a cada acorde, com destaque para o sopro fluente e jovial do líder, que nessa faixa utiliza a corneta, e também para as valiosas intervenções da dupla Duvivier-Dawson.


“Iridescence” é uma balada sofisticada, que possui a delicada eloqüência das confissões amorosas. Aqui atuam apenas Jones e o líder, e o duo cria um clima envolvente, quase impressionista. Vaché possui um universo de referências musicais dos mais ricos e sua performance reflexiva mostra que ele também foi influenciado por Art Farmer e Chet Baker, provavelmente os mais líricos trompetistas da história do jazz. O minimalismo do arranjo apenas realça a beleza do tema, que se revela uma verdadeira homenagem à sutileza e ao encanto.


Fabulosa composição de Oscar Hammerstein e Jerome Kern, “The Song Is You” recebe uma roupagem animada, com direito a uma performance vulcânica de Dawson. Não menos exuberante, Warren injeta no tema um saboroso tempero bop, com improvisos inflamados, que emulam predecessores ilustres, do naipe de Blue Mitchell ou Lee Morgan. Duvivier funciona como um verdadeiro sustentáculo rítmico e brilha tanto no acompanhamento seguro quanto no solo vigoroso.


“No Regrets”, de Harry Tobias e Ronnie Ingraham, foi gravada por Billie Holiday na década de 30. O inspirado quarteto opta por um arranjo ousado, elegante e que moderniza a canção sem lhe retirar o apelo melódico e a beleza. Há aqui discretas pinceladas de bossa nova e ecos de compositores como Burt Bacharach e Henry Mancini. Ao flugelhorn, o líder destila toda a sua criatividade e distribui fartas doses de histamina, enquanto o impecável Jones ensina o verdadeiro significado da palavra charme.


Imortalizada na voz de veludo de Nat King Cole, “The More I See You” ganha uma versão em tempo médio, vibrante e swingada. Sem muito espaço para improvisações, já que a faixa dura pouco mais de três minutos, o quarteto se preocupa apenas em injetar frescor a um tema tão conhecido. Por isso, a interpretação é leve e arejada, com Jones acrescentando um leve tempero bluesy em sua execução. Warren demonstra um controle absoluto do flughelhorn e seu sopro é dotado de uma alegria genuína, como deve ser uma autêntica jam  session.


Nada melhor que “Autumn In New York” para fechar o disco com chave de ouro. Composta em 1934 por Vernon Duke, a canção tem status de clássico incontestável e foi gravada por Charlie Parker, Billie Holiday, Frank Sinatra, Buddy DeFranco, Stan Kenton, Bud Powell e uma infinidade de outros. O quarteto reinventa o tema de maneira dolente e requintada, com amplo destaque para a interpretação apaixonada do líder e para a suavidade do dedilhado de Jones. Um disco sensacional, feito para agradar tanto os não iniciados quanto os jazzófilos mais exigentes.


Músico dos mais requisitados, seu currículo ostenta trabalhos ao lado de George Shearing, Rosemary Clooney, Scott Hamilton, Phil Woods, Jon Faddis, Houston Person, John Bunch, Dick Hyman, Terrell Stafford, Milt Hinton, Howard Alden, Richard Wyands, Bill Charlap, Maxine Sullivan, Benny Carter, Hank Jones, Jim McNeely, Gerry Mulligan, Andre Previn, Woody Herman, Ruby Braff, Dave McKenna, Bobby Short, Joe Puma, Vic Dickenson, Bob Wilber e muitos outros.


Warren cita como primeiras influências músicos ligados ao jazz tradicional e ao swing, como Louis Armstrong, Buck Clayton, Ruby Braff e Bobby Hackett. Em seguida, viriam se agregar a esse leque de influências músicos ligados às correntes modernas, especialmente Fats Navarro, Roy Eldridge, Clifford Brown e Blue Mitchell. E embora possa parecer surpreendente, ele admite ter sido fortemente influenciado por músicos ligados ao free jazz, como Lester Bowie e Don Cherry, a quem considera um verdadeiro gênio.


O aparecimento de Warren no cenário musical ocorreu num momento bastante conturbado para os adeptos do jazz acústico. O mercado era cada vez mais hostil e as oportunidades de trabalho eram bastante rarefeitas para alguém que não usasse baixo elétrico ou sintetizadores em sua banda. Eram tempos em que artistas como Miles Davis ou Herbie Mann eletrificavam seu som e Wayne Shorter, a bordo do Weather Report, e Chick Corea, comandando o Weather Report, viviam seus dias de pop stars.


Por isso, foi saudado, com justiça, pelo crítico Dan Morgenstern nos seguintes termos: “Representa muito para o jazz, essa música de surpresas contínuas, que ela ainda seja capaz de produzir músicos inclassificáveis como Warren Vaché, que encontra novas formas de expressão e agrega aspectos bastante particulares em seu mergulho na tradição do jazz, tradição que outros músicos esquecem ou negligenciam – e existem até mesmo aqueles que nunca foram expostos a ela. Vaché pode ser eclético,  mas conformista ele certamente não é”.


Uma das grandes paixões de Warren é o cinema, com o qual mantém uma relação bastante especial. Ele foi consultor técnico do filme Cotton Club, dirigido por Francis Ford Coppola, e ensinou o ator Richard Gere – que interpreta um trompetista – a tocar o instrumento de maneira convincente. Em 1985, Vaché fez a sua estréia como ator, no filme “The Gig”, de Frank Gilroy, onde fazia o papel de um músico de jazz. Quatro anos depois, compôs o score do filme “The Luckiest Man in the World”, também de Frank Gilroy.


Além disso, atuou nas trilhas sonoras dos filmes Biloxi Blues (dirigido por Mike Nichols, estrelado por Matthew Broderick e lançado no Brasil com o título “Metido em encrencas”), Simon (dirigido por Marshal Brickman, estrelado por Alan Arkin e lançado no Brasil com o título “O mundo perfeito de Simon”) e The Dain Curse (estrelado por James Coburn e lançado no Brasil com o título “A maldição”), entre outros. No teatro, além de tocar em diversos espetáculos da Broadway, Vaché foi o responsável pela direção musical da peça “Private Lives”, do dramaturgo Noel Coward, em uma montagem de 1983, que tinha no elenco ninguém menos que Richard Burton e Elizabeth Taylor.


Ao longo dos quase quarenta anos de carreira, ele já marcou presença em inúmeros festivais ao redor do planeta, como Newport, North Sea, Perugia, JVC, Playboy, Nice, Marciac, Berlim, Edimburgo, Umbria, Bayonne e Pori, na Finlândia. O trompetista costuma se apresentar em alguns dos principais templos da música, como o Carnegie Hall, o Lincoln Center e o Royal Festival Hall, em Londres.


Seguindo as pegadas do ídolo Clifford Brown, Warren lançou, em 2006, um álbum acompanhado por um conjunto de cordas, o elogiado “Donʼt Look Back” (Arbors). As gravações foram feitas em Glascow, terra do The Scottish Ensemble e os arranjos ficaram a cargo do maestro Bill Finegan. Sobre a experiência, o bem humorado Vaché comentou: “Eu me apresento na Escócia há mais de 20 anos e tenho muitos amigos por lá. Me sinto muito à vontade naquele belo país e as pessoas são muito receptivas. Além disso, um país em você pode beber em uma destilaria diferente todos os dias, por mais de dez anos, certamente merece um lugar especial no meu coração”.


Para deleite dos jazzófilos do mundo inteiro, Warren continua a gravar e excursionar com regularidade e em 2004 lançou o DVD instrucional “I Love The Trumpet”, onde desvenda os segredos do instrumento. Um dos projetos a que tem se dedicado com mais fervor nos últimos tempos é o desenvolvimento de um novo modelo de corneta, próprio para sessão de metais de orquestras de jazz. E como se não bastasse o ritmo intenso de trabalho, ele ainda acha tempo para se dedicar à educação musical, sendo um destacado professor do programa de estudos jazzísticos da Juilliard School of Music. Nada mais apropriado, já que segundo o pianista Jim McNeely, “cada acorde que ele toca é como uma lição sobre a história do trompete”.

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