O SOM NÃO TEM FRONTEIRAS, É MADE IN CORAÇÃO!
Música e outras coisas

O SOM NÃO TEM FRONTEIRAS, É MADE IN CORAÇÃO!




Final dos anos 80. Programa do Chacrinha. O grande Toquinho presta homenagem a um amigo oriental, um saxofonista japonês sorridente que, a bordo de uma inacreditável camisa florida, faz alguns malabarismos com um vistoso saxofone dourado. O japonês parece ser um tremendo boa-praça e os versos da canção – “Um amigo meu lá da Terra do Sol Nascente, cruzou o Pacífico e chegou pacificamente” – ajudam a criar a empatia com o personagem. Fiquei curioso para conhecer a música que o sujeito fazia, cheguei a ouvir um ou dois discos lançados no Brasil naquela época, mas achei um negócio meio pasteurizado e deixei o simpático Watanabe-San para lá.

Corta para 2004. Meu amigo James Magno foi passar as férias em São Paulo e pedi a ele para que me trouxesse alguns CDs de jazz. Não especifiquei o que queria e deixei a tarefa a seu encargo, confiando em seu bom gosto mais que precioso. Foram cerca de dez discos e entre um Stan Getz aqui, uma Diana Krall ali, um Trio Viralata acolá, eis que me chega às mãos o álbum “Remembrance” (Verve, 1999). Estranhei a escolha, afinal, para mim, Mr. Watanabe corria na mesma faixa dos açucarados Groover Washington e David Sanborn.

Mas James sabe das coisas e depois que li a ficha técnica, onde constavam nomes como os de Cyrus Chestnut, Christian Mc Bride e Nicholas Payton, fiquei mais tranqüilo. Afinal, o disco não poderia ser tão ruim. Mas ao colocar o bichinho pra rodar, qual foi a minha surpresa! O disco não apenas não era ruim como, na verdade, me fez mudar radicalmente de opinião acerca de Mr. Watanabe. O sujeito toca muito! Passei semanas ouvindo o disco, direto. E o amigo do Toquinho, que havia cruzado o Pacífico e chegado pacificamente, ganhou mais um fã!

Claro que essa breve introdução é para falar sobre o saxofonista e clarinetista japonês Sadao Watanabe. Ele nasceu no dia 1º de fevereiro de 1933, em Utsunomiya, distrito de Tochigi. Seu pai era músico profissional e tocava biwa, um instrumento de cordas tradicional, que se assemelha a um alaúde. Ainda na infância o garoto começou os estudos musicais, dedicando-se primeiramente ao clarinete.

Em 1948, após assistir a uma exibição do filme “Birth of the Blues” (musical de 1941, dirigido por Victor Schertzinger e estrelado por Bing Crosby e Mary Martin, onde são interpretados clássicos como “St. Louis Blues”, “Memphis Blues” e “St. James Infirmary”), apaixonou-se pelo jazz e passou a ouvir, compulsivamente, aquela música originária do país que, até bem pouco tempo atrás, era um ferrenho inimigo.

Após a conclusão do ensino médio, mudou-se para Tóquio, em 1951. Estudou teoria musical com alguns integrantes da Orquestra Filarmônica de Tóquio. O Japão havia sido devastado pela II Guerra Mundial, mas os pacientes e disciplinados japoneses haveriam de reerguer o país em pouco tempo. Nessa época, abandona o clarinete para se dedicar ao sax alto e se descobre um grande fã de Charlie Parker. O cenário jazzístico da capital japonesa era bastante estimulante, pois além dos músicos locais, era possível ouvir muitos integrantes de bandas das forças armadas norte-americanas, então estacionadas naquele país.

Sadao logo se juntou a um dos mais importantes combos da cidade, sob a liderança da pianista Toshiko Akiyoshi. A parceria perdurou de 1953 a 1956, quando Akiyoshi se mudou para os Estados Unidos, a fim de estudar no prestigioso Berklee College of Music. O saxofonista então assumiu a liderança do grupo e continuou na cidade, apresentando-se em clubes de jazz e acompanhando artistas japoneses do período. Seu primeiro álbum como líder, “Sadao Watanabe”, foi gravado em 1961.

Em 1962 é a vez do próprio Sadao se mudar para Boston, seguindo os passos da amiga Akiyoshi. Em Berklee, tocou com músicos importantes, como Chico Hamilton, Gary McFarland e Gabor Szabo. Também nessa época remonta a sua aproximação com a música brasileira, em especial com a bossa nova. Ele recorda como se deu essa relação apaixonada: “Eu estava excursionando com a banda de Chico Hamilton. Me sentia muito solitário naqueles quartos de hoel e um dia comprei um disco de Antonio Carlos Jobim. Fiquei apaixonado por aquela música que me encantava tanto quanto o jazz”.

Em 1965, após a conclusão do curso, Sadao retorna ao Japão, onde se firma como o nome mais importante jazz nipônico. Ele também inicia uma longa e prolífica carreira de educador musical, tendo assumido o cargo de diretor do Yamaha Institute of Popular Music, e por suas mãos passariam algumas gerações de jazzistas japoneses. Em 1967 lança “Bossa Nova Concerts” (Denon), álbum que ajuda a popularizar a música brasileira no Japão. No repertório, composições de Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Dorival Caymmi, Edu Lobo e Luiz Bonfá.

No ano seguinte, ele repetiria a dose em “Sadao Meets Brazilian Friends”, também da Denon, desta feita ao lado da banda Brazilian Octopus, supergrupo integrado, entre outros, por Hermeto Pascoal, Lanny Gordin, Cido Bianchi, Olmir “Alemão” Stocker e Nilson da Matta. Nos anos vindouros, o saxofonista gravaria diversos outros álbuns de música brasileira e bossa nova.

Ainda em 1968, sua participação no Newport Jazz Festival abriu-lhe as portas do mercado internacional e ele passou a ser bastante requisitado, também, no circuito de festivais de jazz, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. A vontade de conhecer novas sonoridades impeliu-o a uma turnê pela África, em 1972, sendo um dos primeiros jazzistas de ponta a se apresentar em países como o Quênia e a Tanzânia, onde, aliás, tocou nas comemorações do décimo aniversário da independência do país.

Ainda em 1972, Watanabe passou a apresentar o programa “My Dear Life” em uma FM de Tóquio, empreendimento que levaria adiante pelos dezenove anos seguintes. Demonstrando toda a sua versatilidade, em meados da década de 70 apresentou-se como solista convidado da Kyoto Symphony Orchestra, em um repertório inteiramente baseado nas composições de Mozart.

A década de 70 o consagraria como o “primeiro superstar do jazz nipônico”, nas palavras do crítico Richard Cook. Ele arrebatou uma infinidade de prêmios, como o Osaka Culture Award, o Arts Festival Grand Prize e o Nanri Fumio Award. Pouco depois, o nome de Watanabe se destacaria nas paradas de sucesso do mundo inteiro, com o hit “California Shower”, incluído no álbum homônimo (JVC, 1978), que foi gravado nos Estados Unidos e conta com as presenças do saxofonista Ernie Watts, do guitarrista Lee Ritenour, do baterista Harvey Mason e do percussionista brasileiro Paulinho da Costa.

Então bastante envolvido com o fusion, ele gravou o bem-sucedido “How’s Everything”, registro ao vivo de dois shows realizados na célebre casa de espetáculos Budokan, em Tóquio, no ano de 1980. O álbum repetiu o sucesso de “California Shower” e dele participam figuras como Richard Tee, Steve Gadd, Eric Gale e Dave Grusin, que também assina os arranjos.

Apesar do sucesso comercial, Watanabe não abandonou completamente o jazz acústico, incluindo em sua quilométrica discografia diversos discos em homenagem ao ídolo Charlie Parker. O primeiro deles foi “Dedicated to Charlie Parker”, gravado em 1969, para a Denon. O mais recente é o espetacular “Parker’s Mood” (Elektra, 1985), no qual o saxofonista lidera um quarteto de primeira linha, integrado pelo pianista James Williams, o contrabaixista Charnett Moffett e o baterista Jeff “Tain” Watts.

Entre o primeiro e o último, destaca-se o portentoso “Bird of Paradise”, gravado em Nova Iorque, no dia 04 de maio de 1977. A seu lado, o The Great Jazz Trio, em uma formação onde pontuavam Hank Jones (piano), Ron Carter (contrabaixo) e Tony Williams (bateria). No repertório, quatro composições de Parker e três dos seus standards preferidos.

A faixa que dá nome ao disco é também a que abre os trabalhos e o resultado não poderia ser mais auspicioso. Sadao é um músico altamente técnico, mas que sabe tocar com alegria e espontaneidade. Sua abordagem inflamada contagia os demais membros do quarteto, especialmente Williams, cuja atuação é das mais vibrantes. O sempre elegante Jones perpetra um solo de extremo bom gosto, abrindo mão da velocidade em prol da sofisticação harmônica. Estupendo solo de Carter, que ainda por cima faz uma graciosa citação de “It Might As Well Be Spring”.

A versão de “Donna Lee” é curta – pouco menos de três minutos – mas não menos intensa. O sopro fulgurante do líder é pura empolgação, com improvisos extremamente bem construídos e de enorme eloqüência. Williams mantém a pegada impetuosa e robusta, solando como um possesso e dialogando em altíssimo nível com o saxofonista, enquanto Jones e Carter, embora não improvisem, ajudam a conservar a temperatura elevada.

A balada “Embraceable You”, dos irmãos Gershwin, ganha um arranjo refinado e algo melancólico. Destaque absoluto para o piano de Jones, que trafega majestosamente entre a introspecção e o lirismo. Ouvir Carter é sempre um grande prazer e nesta gravação o baixista se encontra particularmente inspirado – seu solo longo e pungente transmite muita emoção. O líder se sente à vontade também nos temas mais lentos, mas prefere uma execução discreta, emitindo as notas com sobriedade e precisão.

Uma inebriante versão em tempo médio de “Star Eyes”, de Gene De Paul e Don Raye, vem a seguir. O quarteto insere alguns discretos elementos de música latina, em especial Williams, cuja percussão revela bastante intimidade com os ritmos afro-caribenhos. Hank Jones também demonstra familiaridade com a fabulosa escola cubana e Watanabe faz uma leitura das mais instigantes, extraindo do saxofone sonoridades imprevisíveis e cheias de efeito.

O quarteto retorna ao ambiente bop em “Dexterity”, outro tema de autoria de Parker. As intervenções ferozes de Sadao e sua extrema facilidade para improvisar o colocam entre os grandes nomes do sax alto, como Art Pepper, Phil Woods ou Cannonball Adderley. A destacar, as empolgantes atuações de Jones, que mesmo dedilhando febrilmente as teclas do piano consegue transmitir ao ouvinte uma sensação de serenidade, e do impetuoso Williams, cuja dinâmica rítmica é fundamental para moldar a personalidade deste verdadeiro banquete auditivo.

Carter é o grande destaque individual de “If I Should Lose You”, jóia preciosa da dupla Leo Robin e Ralph Rainger. Sua marcação é impecável e seu solo é arrebatador. Mais um tema parkeriano, “Yardbird Suite” é o veículo perfeito para mais uma exibição de gala do líder. Dono de um ataque rápido e potente, Sadao percorre as harmonias traçadas por Parker com personalidade e esmero, evitando que sua interpretação resvale no plágio. A bateria pulsante de Williams, infalível em suas intervenções, o swing discreto de Carter e o dedilhado envolvente de Jones apenas confirmam a excelência dos acompanhantes.

O álbum encerra com uma versão impactante de “K. C. Blues”, outro tema de autoria de Bird. O quarteto navega pelas águas lamacentas do blues com autoridade e enorme competência. Interessante perceber como Watanabe consegue captar a essência emotiva do estilo, e sua sonoridade expressa a tristeza que é peculiar ao verdadeiro blues. Carter, soberbo, dá à interpretação a necessária profundidade e o piano econômico de Jones, assentado em uma formidável base stride, traduz o lamento primordial, indissociável ao estilo. Para quem está acostumado a ouvir Sadao em contextos mais comerciais, este disco é uma excelente introdução à sua obra jazzística e ao seu talento exponencial.

O saxofonista tem se mantido, ao longo das últimas décadas, como um dos músicos mais requisitados da história do jazz. Seu espírito inquieto o tem levado a trabalhar com músicos dos quatro cantos do planeta, tendo gravado com os norte-americanos Herbie Hancock, Charlie Mariano, Marcus Miller, Grady Tate, Cedar Walton, Peter Erskine e Chick Corea, os brasileiros Toquinho, Leila Pinheiro, Ricardo Silveira, César Camargo Mariano, Romero Lubambo e Ithamara Koorax, o mexicano Armando Manzanero, o camaronês Richard Bona, o peruano Alex Acuña, o senegalês N'diasse Niang, o tcheco Miroslav Vitous e uma infinidade de outros.

A fotografia, que começou como hobby, é outra paixão de Watanabe, que já publicou seis livros sobre o assunto. Outro dos seus hobbies preferidos parece ser o de colecionar prêmios e honrarias, que lhe são concedidos às dezenas. Foi o primeiro músico de jazz agraciado com o Grand Prix Award (1976) e o National Award (1977), dados pelo governo do Japão e em 1995 recebeu o Honors Award, da prefeitura de Utsunomiya, sua cidade natal. No ano seguinte, foi a vez do Arts Award, que lhe foi dado pelo Ministério da Cultura do Japão. Desde 1988 Sadao exibe o título de Cidadão de Los Angeles, honraria que lhe foi concedida pela Câmara Municipal da cidade.

Ele também recebeu o Cultural Honors Award, dado pela Prefeitura de Tóquio em 1995. No mesmo ano, foi agraciado com o título de Doutor Honorário, concedido pelo Berklee College of Music, onde havia estudado na década de 60, e a Imperial Purple Ribbon Medal, uma das comendas mais importantes do Japão e que é concedida pelo próprio Imperador. Em junho de 2002 seria a vez do Cultural Honors Award, concedido pela prefeitura de Tochigi e no ano seguinte ganharia o Montblanc International Culture Prize, dado pela célebre fabricante de canetas.

Em 2001 Sadao comemorou os 50 anos de carreira com uma extensa turnê pelo Japão, lotando casas de espetáculo, teatros e auditórios dos mais diversos pontos do país. O governo japonês o nomeou um dos produtores executivos da EXPO 2005, exposição mundial realizada na cidade de Aichi. Participou de dezenas de concertos beneficentes, destacando-se os projetos “Kids for Banbini”, na Itália, e “Make a wish in Guam”, na Micronésia.

Aguerrido militante das causas humanitárias, em 2006 Watanabe foi o primeiro músico de jazz a excursionar em Myanmar, a antiga Birmânia, desafiando a truculenta ditadura militar que há mais de 40 anos governa o país. Doze anos antes, também havia sido um dos primeiros jazzistas a excursionar pela África do Sul, logo após a eleição de Nelson Mandela e a abolição do odioso regime do apartheid.

Sempre de bem com a vida, Sadao Watanabe é um dos artistas mais queridos e reverenciados do Japão. Continua a gravar e a excursionar com intensidade e dentre os seus últimos registros destacam-se “Sadao and Charlie Again”, ao lado do velho amigo Charlie Mariano, que na década de 60, quando ainda estava casado com a pianista Toshiko Akiyoshi, morou alguns meses na casa de Sadao. O disco foi gravado em 2005, ao vivo, durante uma apresentação no clube Blue Note de Nagóia. Outro projeto é o recente “Basie's at Night”, álbum duplo gravado para a Koch em 2008 e que inclui no repertório standards do jazz como “Deep In A Dream” e “I’m Old Fashioned” e gemas da música brasileira, como “Manhã de carnaval”, de Luiz Bonfá e Antônio Maria, e Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha.

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  Sadao Watanabe - Dexterity by Jazz + Bossa

  Sadao Watanabe - Donna Lee by Jazz + Bossa



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