O SOLITÁRIO CONCERTO QUE VALEU POR UMA VIDA
Música e outras coisas

O SOLITÁRIO CONCERTO QUE VALEU POR UMA VIDA



Um jovem caminha a passos trôpegos por uma deserta e quase fantasmagórica Paris. A Cidade Luz é agora mera figura de linguagem – não há viv’alma naquelas ruas escuras e os passos do rapaz ecoam pela madrugada. Embriagado de vinho barato, sofrendo em silêncio, ele é o retrato vivo do abandono e do desespero. Não é o primeiro e nem será o último coração vitimado por intensas dores de amores, mas está decidido a pôr fim à própria vida. E se o suicídio é a última opção que lhe resta, que pelo menos seja em grande estilo – haverá de perecer sob as águas geladas do Rio Sena.


Ao se aproximar do local de onde saltará para a eternidade, algo o desperta de seu torpor. Uma suave melodia invade a noite parisiense e, lentamente, se insinua pela vastidão daquelas ruas escuras. O jovem apura os ouvidos e reconhece os maravilhosos acordes de Round Midnight, tocada por um solitário saxofone. O som tépido da imortal canção de Monk vai aquecendo o coração do rapaz e o suicídio, que até então era a sua única certeza, vai pouco a pouco sendo adiado – muitas outras paixões e muitos outros desenlaces imperfeitos ainda haveriam de atormentar aquele irrequieto coração.


Ele gira sobre os calcanhares, aperta o passo e caminha, agora a passos largos, em direção às luzes do Boulevard Saint-Germain, onde alguns desgarrados boêmios aguardam, com a sempiterna taça de vinho nas mãos, o nascer de mais um dia, para que possam retornar às suas casas. Sob as estrelas do céu parisiense, o jazz acaba de, literalmente, salvar a vida daquele outrora resoluto candidato ao suicídio.

Essa história é verdadeira e foi contada pelo jornalista e crítico musical Roberto Muggiati em uma entrevista para o site Clube de Jazz – era ele o determinado jovem que, atormentado por uma paixão não correspondida, decidiu pôr fim à vida sob as águas do Sena – e o responsável por mantê-lo neste plano existencial foi o também jovem saxofonista Barney Wilen, que na época despontava como uma das maiores revelações do jazz europeu.

Bernard Jean Wilen nasceu em Nice, no dia, 4 de março de 1937, filho de mãe francesa e pai americano. Ainda adolescente, apaixonou-se pelo jazz e começou a aprender saxofone, sofrendo forte influência de Sonny Rollins e Harold Land. Incentivado pela mãe, mudou-se para Paris em meados dos anos 50 e logo se tornou um dos mais respeitados músicos locais. Chegou a dividir os palcos com ninguém menos que Bud Powell e, dentre outros gigantes, acompanhou Miles Davis e John Lewis em discos antológicos. Em 1959, depois de uma apresentação consagradora no Festival de Newport, Wilen foi convidado a integrar os Jazz Messengers, após a saída de Benny Golson. É exatamente desse período o disco “Las Liaisons Dangereuses”, trilha sonora do filme homônimo, dirigido pelo francês Roger Vadin.

O diretor havia inicialmente convidado Thelonious Monk para executar a trilha do seu filme, composta pelo pianista Duke Jordan, mas problemas de agenda impediram que o monge completasse o trabalho e diversas músicas do score não foram gravadas. Art Blakey foi a opção escolhida para concluir a trilha e o disco foi gravado entre os dias 28 e 29 de julho de 1959, no estúdio Nola, em Nova York. Com uma formação que incluía, além do francês Wilen (sax tenor e soprano), Lee Morgan no trompete, Bobby Timmons no piano e Jimmy Merritt no baixo, Blakey ainda pôde contar, em uma das faixas, com o próprio Jordan. Além disso, o líder dos Jazz Messengers adicionou John Rodriguez (bongô), Tommy Lopez e Willie Rodriguez (congas), a fim de dar uma maior densidade percussiva às faixas.


O nível das composições é extraordinário e essa formação pouco usual dos Messengers perpetrou um álbum de muita personalidade, pois ao mesmo tempo em que se manteve bastante fiel às pretensões do diretor, é uma obra com vida própria. Por se tratar de uma trilha sonora, algumas músicas são mostradas em duas versões diferentes, mas esse procedimento em nada diminui a qualidade artística do álbum ou a excelência técnica das execuções. O destaque absoluto do disco é o jovem Wilen, com seu fraseado redondo e envolvente, tanto no sax tenor quanto no sax soprano.

Calcado num hard bop de primeira linha, o disco abre com a pululante “No Problem”, digna dos melhores momentos dos Messengers. Uma ótima linha de baixo conduz a melodia, permitindo que Wilen e Morgan se esmerem nos solos, não menos que magistrais. Blakey está à vontade para detonar a pobre bateria e o faz sem dó nem piedade, com direito a um solo incandescente – além de ser, seguramente, o maior arregimentador de talentos da história do jazz, o sujeito ainda tocava muito!

Em “No Hay Problema” os três percussionistas injetam uma tonalidade caribenha à melodia, com um ótimo trabalho do piano de Timmons. Na suave “Prelude In Blue (à L’Esquinade)”, Wilen usa o sax soprano, produzindo uma atmosfera impressionista de rara beleza. Aqui é o próprio autor da música, Duke Jordan, quem pilota o teclado e transborda todo o lirismo, fazendo o contraponto mais que perfeito para a delicada textura sonora alinhavada pelo saxofonista. Na sacolejante “Valmontana”, outro diálogo bastante energético entre Morgan e Wilen, que interagem telepaticamente o tempo inteiro, enquanto um incansável Blakey costura o acompanhamento rítmico, com a costumeira energia.

Hard bop de ótima cepa também se ouve nas aceleradas “Miguel’s Party” e “Prelude In Blue (Chez Miguel)” – num arranjo em tempo mais rápido, bastante diferente da primeira versão – onde os sopros de Morgan e Wilen são realçados pelo ótimo trabalho dos percussionistas, que despejam ali um caliente molho latino. Um grande disco, realizado por uma banda afiada e muito entrosada – como curiosidade, em uma cena do filme assiste-se a um show de uma banda “baseada” nos Jazz Messengers, mas aqui a formação era: Kenny Dorham (trompete), Barney Willen (sax tenor), Duke Jordan (piano) Paul Rovere (baixo) e Kenny Clarke (bateria).

O saxofonista francês permaneceu pouco tempo com os Jazz Messengers, pois no ano seguinte seria substituído por Wayne Shorter. No final dos anos 60, influenciado pelo rock e pela onda psicodélica, gravou o álbum “Dear Prof. Leary”, em homenagem ao amalucado guru da contracultura, Timothy Leary. Na década seguinte, o flerte com o rock tomou contornos mais explícitos, tendo integrado a banda Moko. Nos anos 80 e 90 retornou ao jazz, tendo gravado com regularidade ao lado do pianista Laurent de Wilde. Barney Wilen morreu no dia 25 de maio de 1996, na mesma Paris que o havia acolhido em meados dos anos 50. É provável que jamais tivesse sabido que sua música certa vez salvou a vida de um jovem brasileiro, perdido nas noites frias de Paris, mas aquele obscuro concerto, produzido em uma solitária madrugada parisiense, certamente está inscrito na galeria de performances mais memoráveis do jazz.


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P. S.: Este post é dedicado ao Mestre José Domingos Raffaelli, exemplo de integridade jornalística e que tem nos brindado com a sua comovente generosidade e seu monumental conhecimento jazzístico aqui no JAZZ + BOSSA.



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