O PROFETA ESCARNECIDO
Música e outras coisas

O PROFETA ESCARNECIDO



 
Seus olhos estão fixos sobre as águas caudalosas

O gosto do pão dormido permanece em sua língua

E suas gengivas ardem como uma antiga fornalha

Os olhos brilham e a bruma distorce as velas dos barcos

Que passam ao longe

Os barcos estão distantes,

Mais distantes que a pequena cidade onde ele nasceu

Ele não desejava a coroa de espinhos,

Nem reinos deste ou de outro mundo

Queria viajar e ver o mar

Ouvir o ruído avassalador das ondas...

A liberdade foi conseguida a fórceps,

Dentro do olho do furacão,

Sentiu o hálito perverso da fera

Havia dezenas delas em cada esquina

Mas ele não se importava

Bêbado de luz, dançava ao som dos passarinhos

E seu corpo vibrava sob a luz prateada da lua

Não há ninguém para dizer adeus

E nenhum lugar é longe demais para seu passo tranqüilo

Recusou todos os futuros brilhantes

Que outros imaginaram para ele

E mesmo perseguido e caluniado,

Mantinha a leveza dentro de si

Não perdia a sobriedade quando lhe atiravam pedras

E continuava a dança pagã,

Tendo a lua como única testemunha

O claustro foi-lhe como uma lufada de ar essencial

O enleio da aurora furta-cor fustigava-lhe a memória

Ele esperava pelas manhãs enquanto os dias pareciam não ter fim

O tempo reluzia, mas era uma luz de eterno mistério

O tempo era um catre deserto

E ele se sentia solitário como o campônio

Que se enamora da estrela mais longínqua...

Caminhou por montanhas e por vales,

Bebeu nuvens como se fora um sonho

Venceu pelo cansaço aqueles que o queiram um mártir,

Não era líder de ninguém,

Não arrebatava multidões

Não tinha nome, mas aprendeu a ler

E a palavra se fez sua amiga e confidente

A selvageria foi sua única professora

E a névoa do crepúsculo esculpiu-lhe o rosto de pedra

Seu riso era turbulento e só as estrelas pareciam entendê-lo

Enquanto a espuma do mar lambia sua face

Com a docilidade de um cão

Dividiu o pão adormecido com os fracos e os doentes

E passava horas a fitar o horizonte escorregadio,

Uma vez pediram-lhe conselhos

Mas ele não os tinha para dar

Escarneceram dele, mas continuou a cultivar seu jardim,

A música era bálsamo

E dava sentido às cores e às formas

Acariciava o cachorro adormecido

E lia sonetos que falavam sobre o mar

Ignorava a razão cartesiana

Preferia a singeleza das hortas cultivadas

Dos choupos insubmissos

Campo e litoral eram seus paraísos

E não mais havia o rosto dela para perturbá-lo

A luz provinha do mar e não do sol,

Do rio e não dos lampiões...

Ele era belo em sua imperfeição...

Seus olhos continuam fixos sobre as águas caudalosas

E o gosto do pão dormido ainda permanece em sua língua...

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Considerado um dos principais operários do hard bop, o saxofonista Herman “Junior” Cook é hoje um nome pouco lembrado.  Nascido em Pensacola, na Flórida, no dia 22 de julho de 1934, travou desde cedo contato com o meio musical, pois o pai e o irmão mais velho eram trompetistas. Iniciou-se na profissão tocando em bandas de R&B da cidade natal e seus primeiros ídolos eram Wardell Gray, Sonny Rollins e Sonny Stitt.

Estimulado pelo conterrâneo Gigi Gryce, Junior mudou-se para Nova Iorque em 1957, em busca de melhores oportunidades de trabalho. Seu primeiro emprego foi na banda da contrabaixista Gloria Bell, com quem permaneceu de julho a dezembro daquele ano. No início de 1958 ganhou alguma visibilidade por conta do seu trabalho com Dizzy Gillespie.

Naquele mesmo ano, foi contratado por Horace Silver para integrar o seu célebre quinteto, um dos mais badalados dos anos 50 e 60. Silver conta como foi o encontro com Cook: “eu estava tocando em Baltimore e fui a Washington assistir a um concerto de Lou Donaldson. Cook também estava na cidade, tocando com uma banda de rock que se apresentava no Howard Theater. Naquela noite, estávamos os dois no clube onde Lou tocava e ele nos convidou para subir ao palco. Eu ainda não conhecia Cook e ouvi-lo foi uma agradável surpresa para mim”.

Quando o saxofonista Clifford Jordan deixou a banda de Silver, o pianista lembrou-se de Cook e não hesitou em chamá-lo para seu quinteto. Juntamente com o amigo Blue Mitchell, outro músico nascido na Flórida, Cook foi um dos principais responsáveis pela sonoridade funky, vibrante e agressiva de Silver. Seu sopro poderoso está presente em alguns dos melhores álbuns do pianista, como “Blowin’ the Blues Away” (1959), “Horace-Scope” (1960), “Tokyo Blues” (1962) e “Silver’s Serenade” (1963), todos da Blue Note e sua performance na banda levou o crítico John Tynan, da Down Beat, a descrever Cook como “um solista intenso e imaginativo, um artífice que não tem pressa em elaborar as suas construções musicais, sempre repletas de sentido.”

A parceria com Silver se dissolveu em 1964, quando Cook decidiu se unir a Blue Mitchell, que havia deixado a banda para montar seu próprio quinteto. A saída dos dois se deu maneira tranqüila e Cook foi substituído por Joe Henderson, com quem havia dividido um apartamento no início da década de 60. Interessante é que os dois – Cook e Henderson – participaram das gravações de “Song For My Father” (1964), o álbum mais bem sucedido, comercialmente falando, do pianista.

Silver recorda com carinho a época em que Mitchell e Cook atuaram em sua banda: “Nós amávamos muitos uns aos outros, tínhamos uma incrível afinidade musical e adorávamos tocar juntos. Uma das razões pelas quais permanecemos juntos por tanto tempo e fizemos registros memoráveis ​​é que era uma banda muito entrosada. Eu tive outras bandas, onde havia excelentes músicos, mas este grupo em particular era fantástico. Eles podiam tocar tudo, bebop, funk, blues, baladas. Os caras eram perfeitos em sua abordagem musical”.

A união com Mitchell também foi bastante longa e frutífera, rendendo discos clássicos como “The Thing To Do” (1964), “Bring It On Home To Me” (1965), “Down With It” (1965) e “Boss Horn” (1966), lançados pela Blue Note. A dupla se separou em 1969 e Cook partiu para o trabalho como freelancer, embora tenha liderado seus próprios grupos. O ambiente musical, todavia, era bastante desfavorável a um músico tão ligado ao hard bop, pois o mundo do jazz gravitava, então, basicamente em torno do chamado free jazz, vertente com a qual o saxofonista jamais teve qualquer identificação.

Não obstante, Cook se manteve como um disputado sideman, tendo participado de gravações sob a liderança de Kenny Burrell, Dave Bailey, Freddie Hubbard, Big John Patton, Elvin Jones, Barry Harris, George Coleman, Louis Hayes, Kenny Drew, Steve Turre, Larry Gales, Cedar Walton, Bill Hardman, Louis Smith, McCoy Tyner e muitos outros. Por outro lado, sua discografia como líder é bastante esparsa, com trabalhos para Jazzland, Catalyst, Muse e SteepleChase.

Durante a década de 70, Cook deu aulas na Berklee School of Music, em Boston. Na década seguinte, sua parceria mais duradoura foi com o trompetista Bill Hardman, outro egresso das hostes de Horace Silver. No início dos anos 90, Junior co-liderou um quinteto com o saxofonista Clifford Jordan, mas jamais obteve o reconhecimento merecido.

Desencantado com o meio musical e fortemente deprimido, o saxofonista morreu no dia 03 de fevereiro de 1992, sozinho, em seu apartamento em Nova Iorque. A causa da morte não foi revelada pela família. Para o crítico britânico Richard Cook, seu xará norte-americano era “um músico nem um pouco ambicioso, que dominava com autoridade o seu ofício e que estava sempre disposto a olhar mais além. Sua sonoridade residia em algum ponto entre Dexter Gordon e Joe Henderson”.

Um dos seus raros momentos como líder pode ser conferido no disco “Junior’s Cookin’: The Junior Cook Quintet Featuring Blue Mitchell”. Trata-se do primeiro disco em seu próprio nome, lançado pela Jazzland, com produção de Orrin Keepnews e Russell Jacquet. As gravações foram feitas em duas sessões, sendo que a primeira foi realizada no dia 10 de abril de 1961, em Long Beach, Califórnia, no Gold Star Studio, do produtor Phil Spector. A segunda ocorreu no dia 04 de dezembro do mesmo ano, em Nova Iorque.

Ao lado de Cook, além do amigo Mitchell, estavam o contrabaixista Gene Taylor, o baterista Roy Brooks e os pianistas Ronnie Mathews e Dolo Coker. O álbum abre com a misteriosa “Myzar”, hard bop musculoso que possui um indisfarçável acento oriental. Composta por Roland Alexander, a faixa apresenta o sofisticado piano de Mathews em um estimulante duelo com os sopros. A afinidade entre o líder e o trompetista é mais que evidente e seus solos possuem uma vitalidade e uma energia contagiantes.

“Turbo Village”, de Charles Davis, dá outra poderosa amostra dos predicados de Cook. Improvisador inteligente e lúcido, ele é um perito nos tempos rápidos, inflamando a sessão com um sopro luxuriante e fluido. Inspirado pelo amigo, Mitchell se mostra particularmente explosivo e suas intervenções são como furiosas lâminas sonoras, com direito a uma breve, porém tórrida, citação a “Woody N’ You”, de Dizzy Gillespie. O metrônomo Brooks dita o ritmo com precisão enquanto Mathews imprime pitadas de blues ao tema.

Em “Easy Living”, balada de Leo Robin e Ralphf Reigner imortalizada por Billie Hollyday, pode-se perceber o lado lírico e sensível de Cook. Adotando uma sonoridade tranqüila e relaxada, ele se mostra um ótimo executante de baladas. Acompanhante seguro, Mathews elabora uma ancoragem melódica refinada, à altura da execução do líder. Mitchell aparece apenas na parte final do tema e sua breve intervenção acrescenta um discreto brilho à faixa.

“Blue Farouq”, de Mitchell, traz Dolo Coker ao piano e é a primeira das três faixas em que o pianista participa. Trata-se de um blues intenso e caudaloso, com atuações memoráveis de Coker, cuja abordagem calcada nos registros mais graves remete ao grande Red Garland, e de Mitchell. Seu trompete é ácido, estridente, furioso, indomável. O saxofone robusto do líder é responsável por improvisos surpreendentemente relaxados, que contrastam com a velocidade impressa pelo trompetista.

“Sweet Cakes” possui alguns elementos de música afro-caribenha em sua introdução, mas progride como um hard bop vigoroso. Mitchell, autor do tema, tem amplo espaço para solar e o faz com a perícia de sempre. O piano volátil de Coker alinhava os acordes com energia e convicção, misturando-os com a poderosa percussão de Brooks. Os solos do líder rivalizam, em consistência e inventividade, com o que de melhor fizeram seus contemporâneos – e, de alguma forma subestimados – George Coleman, Clifford Jordan e Hank Mobley.

“Field Day” é uma composição de Coker e possui uma atmosfera alegre, sendo quase uma fanfarra. O pianista é o responsável pela contagiante introdução e pelos riffs infecciosos que tornam o tema irresistível. O líder tem uma atuação ousada e constrói frases velozes, mas sempre muito articuladas. Mitchel também se mostra bastante à vontade, catapultando os agudos do seu trompete à estratosfera.

A ensolarada “Pleasure Bent” promove a volta de Mathews ao piano e encerra o disco em altíssimo astral. Apesar da voltagem elevada, em momento algum o pianista tenta soar como Horace Silver ou copiar-lhe o estilo percussivo. A solidez da sessão rítmica, que ainda por cima garante a Taylor seu único solo em todo o disco, permite a Cook e a Mitchell mais uma formidável exibição de sincronia e entrosamento, numa relação sinergética onde o resultado final é bem mais notável que a mera soma das partes.

Um disco despretensioso e extremamente bem realizado, que mereceu do crítico Jim Todd, do site Allmusic, a seguinte observação: “Embora não seja uma audição obrigatória, é um set honesto e bastante satisfatório, que traz Cook e Michell, figuras de ponta no desenvolvimento do hard bop, em ótima forma”. Não é à toa que o bem-humorado Ira Gitler, autor do texto de apresentação, sugere que em breve Cook (cozinheiro, em inglês), deverá ser promovido a Chef!

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