O ENTORNO DO TEMPO
Música e outras coisas

O ENTORNO DO TEMPO




Eu havia estado ali
Anos, décadas, milênios antes...
Era o eu que não sou hoje
Um outro eu
Desassombrado e menino
O eu de agora, hesitante e ressentido, ardera completamente
Círio imperfeito, queimado na agonia do desencanto
Reflexo torto e fatigado
Um eu feito de cinza e memória
Sequer reconheci o lugar
Onde havia experimentado um arremedo de felicidade
O velho carrossel girava debilmente,
Quase não conseguia completar mais um ciclo
Rangia, cansado e deserto
As luzes de outrora jaziam apagadas
E as ocorrências de eternidade
Se resumiam a um guincho sombrio e mudo
Já ninguém se importava com aquele carrossel abandonado
Já ninguém se encantava com seus brilhos e adereços
Não havia filas à porta da bilheteria, nem sorrisos nos rostos
A vida do lugar esvaíra-se como uma hemorragia lenta
Não era só o tempo, o tempo de ferrugem nas juntas
Nem era só a ação do vento e da chuva
Era outra coisa
Algo que não mais estava ali
A existência faltante,
O temor que sobrepujou toda a esperança,
A dolorosa experiência de quase não ser
O olhar do menino era só encanto e arrebatamento
Entre o aleatório e o fortuito, não pensava nas em nada
Era apenas um menino...
Nem romântico nem cínico
Dono de ilusões por se concretizar
Não era como hoje
Quando as aspirações se viram malogradas,
O acolhimento transformou-se em renúncia
E o olhar reflete apenas a ausência e o rancor
Óleo e tinta não bastariam
Para reavivar o que se perdeu para sempre
Porcas e parafusos, lâmpadas e dosséis
Não trariam de volta
A espontaneidade das noites de domingo da infância usurpada
A alegria das brincadeiras
Os céus cheios de estrela
Os outubros sem chuva
O menino que tateava pelo escuro do futuro
E que cresceu sem poder moldá-lo
Envelheceu como o carrossel


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O trompetista norte-americano Jon Eardley nasceu no dia 30 de setembro de 1928 na cidade de Altoona, estado da Pensilvânia. A intimidade com a música vem de berço, pois seu pai, William Eardley, também era trompetista, tendo atuado nas bandas de Paul Whiteman e de Isham Jones. Graças à influência paterna, Jon iniciou-se no trompete aos 11 anos. O talento estava nos genes e com 15 anos ele já estava tocando nas bandas da escola, em festas populares, em circos e em reuniões familiares e de amigos.

Com 18 anos foi recrutado para o serviço militar, que cumpriu de 1946 até 1949, na Força Aérea, tendo servido na capital americana, Washington, D.C. Data desse período a aproximação mais forte do trompetista com o jazz, tocando na banda da Força Aérea.  Poucos meses antes de ser desligado das forças armadas, Eardley teve a oportunidade de tocar com Buddy Rich em sua big band.

Pouco antes de ser desligado do serviço militar e até algum depois de desmobilizado, entre 1949 e 1950, ele fez parte das orquestras do cantor e bandleader Gene Williams e do baterista Joe Timer. A bordo desta última, atração fixa do clube Kavacos, Eardley teve a honra de tocar com gênios como Charlie Parker e Bud Powell, em fevereiro e abril de 1953, respectivamente. Ainda em Washington e paralelamente a seus trabalhos com Williams e Timer, ele formou um quarteto que atuou no cenário local de 1950 a 1953, quando decidiu se estabelecer em Nova Iorque.

Na Meca do Jazz, Jon tocou com Phil Woods, com quem fez algumas gravações em 1954, Zoot Sims, Stan Getz, Red Mitchell, J. R. Monterose e Larry Bunker. Percorreu o circuito dos clubes e perambulou pelo “Greenwich Village” em seguidas “jam sessions”, principalmente no “Open Door”. Naquele mesmo ano, foi convidado para integrar a banda de Gerry Mulligan, substituindo ninguém menos que Chet Baker. O grupo contava com a presença do talentoso Bob Brookmeyer e a associação perduraria até 1957.

A parceria com Mulligan possivelmente foi a maior vitrine para Eardley, projetando-o no cenário da Big Apple, ainda que possamos dizer que isso de certa maneira foi prejudicial para sua sonoridade, até então “clássica”. De fato, ele teve que migrar de seu estilo para um som mais metálico, levando-o à improvisação não mais sobre a melodia, mas em paráfrases harmônicas. Se ouvirmos a sucessão de gravações que ele fez naquele período, podemos constatar que somente anos depois ele dominou inteiramente o som mais moderno. De qualquer forma, ele soube sintetizar o encontro entre o classicismo de Freddie Webster e a abordagem revolucionária de Fats Navarro, não por acaso seus ídolos e maiores influências musicais.

Durante sua atuação com Mulligan, ele teve a oportunidade de cumprir temporada na Europa, sendo que em Paris, onde gravou com Zoot Sims, ambos acompanhados por Henry Renaud (produtor da gravação do LP duplo “I Remember Bebop”, lançado em 1978 no Brasil  pelo selo “CBS”, uma feliz idéia reunindo 08 mestres do teclado, cada um deles lembrando um músico de JAZZ criador ou ligado às raízes do “bebop”).

Também nessa oportunidade ele gravou, na Suécia, o tema “Blues For Tiny”, juntamente com Gerry Mulligan, Red Mitchell e Chico Hamilton. Em 1956, quando ainda era membro da banda de Mulligan, Eardley tocou com o saxofonista Hal McIntyre. Em nova e mais longa temporada européia com Mulligan, Eardley fez parte de uma formação espetacular, que contava ainda com Zoot Sims, Bob Brokmeyer, Bill Crow e Specs Bailey. O grupo fez concorridas apresentações na Itália (Turim, Roma, Nápoles, Genova, Bolonha e Milão), França (Paris, Versalhes, Lion, Rouen e Roubaix), Suíça (Genebra) e Bélgica (Bruxelas).

A discografia de Eardley não chega a ser, pelo menos quantitativamente, de entusiasmar, mas em termos de qualidade ele nos deixou obra de grande mérito. Dentre as suas gravações como líder, destaca-se o formidável álbum “From Holywood To New York”, lançado em cd pela OJC. Trata-se, na verdade, da reunião de dois álbuns de 10 polegadas: “Jon Eardley In Hollywood”, gravado para o selo “New Jazz”, e “Hey There, Joe Eardley”, para a Prestige.

As gravações do primeiro disco foram feitas no dia 25 de dezembro de 1954, em Los Angeles, e os companheiros do trompetista na empreitada foram o pianista Pete Jolly, o contrabaixista Red Mitchell e o baterista Larry Bunker. Para o segundo, foram recrutados o saxofonista J.R. Monterose, o pianista George Syran, o contrabaixista Teddy Kotick e o baterista Nick Stabulas, que se reuniram no estúdio de Rudy Van Gelder, em Nova Jérsei, no dia 14 de março de 1955.

A disposição no cd obedece à ordem cronológica, ou seja, as quatro primeiras faixas pertencem ao “In Hollywood” e as quatro últimas ao “Hey There”. A faixa de abertura é a vulcânica “Late Leader” e, como todas as demais desse disco, é de autoria de Eardley. Conjugando a complexidade harmônica do bebop com a espontaneidade do swing, o tema paga tributo a trompetistas da primeira geração do bebop, como Fats Navarro, ao mesmo tempo em que evoca a opulência sonora da orquestra de Count Basie. O desempenho do líder é arrebatador e revela a influência que os estilos clássicos do jazz, como o swing e o dixieland tiveram em sua formação.

Na pungente “Indian Spring”, Eardley foi buscar inspiração em uma composição de Maurice Ravel, “Pavanne To A Dead Princess”. O trompetista sopra notas doloridas e constrói um clima de desamparo, reforçado pelo piano solene de Jolly. O quarteto retoma a atmosfera festiva na contagiante “Black”, bebop cadenciado onde se destaca o sensacional trabalho de Bunker. O tema é uma homenagem ao pianista Rudy Black, amigo do trompetista e seu parceiro musical de longa data.

Em seguida, outro petardo sonoro, a suntuosa “Gloss”. Com uma influência bastante visível do swing, a faixa permite ao líder e a Jolly uma impactante demonstração de virtuosismo. O pianista, inclusive, mostra um impressionante leque de referências, indo do ragtime ao bebop com absoluta autoridade. Atuações firmes e bastante sóbrias de Mitchell e Bunker garantem a cadência e o swing do tema.

A sacolejante “Hey There”, de autoria de Jerry Ross e Richard Adler, marca o encontro entre dois grandes mas pouco conhecidos virtuoses: Eardley e Monterose. O trompetista tem uma sonoridade límpida, ensolarada, que remete à escola californiana e faz um belo contraste com o som sujo e rascante do saxofonista, típico da escola novaiorquina. Inspirados, os dois cometem solos inventivos e tecnicamente complexos, destacando-se o apoio inflamado de Syran e a explosiva percussão de Stabulas.

Composta por Eardley, a opulenta “Demanton” é um bebop flamejante, executado em tempo ultra rápido. Destaque para o piano nervoso de Syran e para a energética atuação do líder, cujo sopro musculoso e viril tangencia a pegada vibrante de seu contemporâneo Clifford Brown. Os improvisos desconcertantes de Monterose e o vigoroso solo de Stabulas também merecem ser ouvidos com atenção redobrada.

Para encerrar, duas composições de Tadd Dameron: “Sid’s Delight” e “If You Could See Me Now”. Na primeira, a abordagem de Eardley é furiosa e essencialmente bopper, apresentando solos entusiasmados e muito bem construídos do ponto de vista técnico. O parceiro Monterose, igualmente  hábil, responde à altura as provocações do líder, atacando o saxofone com maestria, dando azo a solos inquietos e audaciosos. Na segunda, emerge o lado baladeiro do líder, que usa aqui uma sonoridade aveludada e tranqüila, muito bem escorado pelos acordes plácidos de Syran e pelo contrabaixo climático de Kotick. Um disco honesto, feito por músicos de alto gabarito, que demonstram em cada nota estarem se divertindo bastante nas sessões de gravação.

Embora não tenha deixado tantos registros, mesmo como sideman, Eardley pode ser ouvido em algumas gravações de Gerry Mulligan para os selos EmArcy e Jazz Band. Na companhia do líder e do trompetista, pontuam figuras de primeira linha, como Bob Brookmeyer, Zoot Sims, Peck Morrison, Bill Crow e Dave Bailey. Após sua atuação com Mulligan, Eardley retornou a Altoona, sua cidade natal, para cuidar de assuntos familiares atuando esporadicamente na cidade e nas suas cercanias até 1963, quando decidiu retomar a carreira musical.

Mudou-se para a Bélgica e passou a atuar regularmente em concertos, apresentações em clubes e em festivais, destacando-se o “Comblain-la-Tour”, realizado naquele país em 1964. Dignas de registro também são a sua colaboração com Benny Bailey e suas temporadas em países como Holanda, em 1969 e 1970, Inglaterra, em 1977, e na Alemanha, onde chegou a residir durante os anos 70, fixando-se em Colônia.

Em 1981, atuou ao lado de Chet Baker, tocando flugelhorn nos discos “Round Midnignt” e “I’ll Remember You” (ambos para a Circle). Também tocou com inúmeros músicos europeus, como o pianista alemão Joachin Kühn, o baterista suíço Daniel Humair, o trompetista sérvio Dusko Gojkovic, o pianista holandês Rein de Graaf e o arranjador e compositor alemão Harald Banter.

Em seus últimos anos de atuação Eardley tocou com grandes músicos como Al Haig, Mickey Rooker e J. R. Monterose, além de ter feito parte da “WDR Big Band” de Colônia. Infelizmente, o trompetista veio a falecer com pouco mais de 62 anos, no dia 01 de abril de 1991. Morava, então, no povoado de Lambermont, próximo à cidade de Verviers, na Bélgica.

Pedro "Apóstolo" Cardoso sintetiza a trajetória de Eardley: "pode-se afirmar com certeza que mesmo sem ser entusiástica e permanentemente reconhecimento em seu país, ele é muito respeitado na Europa, o que se justifica por seus quase 30 anos de atuação no velho continente. Mesmo sendo rotulado à escola do “West Coast Jazz”, face à sua atuação com Mulligan e outros, seu estilo é francamente mais próximo ao Jazz Clássico".

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