O CRISÂNTEMO E O BAOBÁ
Música e outras coisas

O CRISÂNTEMO E O BAOBÁ



O baobá (Adonsonia digitata) é uma gigantesca árvore africana, da família das bombáceas, que pode alcançar até 30 metros de comprimento e seu frondoso tronco pode chegar a mais de 10 metros de diâmetro. Árvore típica das savanas e de regiões semi-desérticas, possui uma enorme capacidade de acumular água em seu interior, o que lhe permite suportar o calor inclemente de regiões tão inóspitas, e pode viver alguns bons milhares de anos.


É um dos maiores organismos vivos do planeta e seu porte majestoso faz com que seja objeto de adoração por parte de diversos povos africanos. Em uma das mais célebres passagens d’O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Exupéry narra as agruras do singelo principezinho ao tentar, inutilmente, livrar o seu minúsculo planeta de algumas dessas imponentes árvores – o protagonista chega a pedir ao aviador que lhe desenhe um carneiro para que este coma os baobás e, assim, possa se ver livre da praga.


O crisântemo (Chrysanthemum morifolium), por sua vez, é uma planta muito diferente, a começar pelo tamanho, pois mesmo as maiores das quase 100 espécies mal atingem um metro de altura. Trata-se de uma flor originária da China e cultivada ali há mais de dois mil e quinhentos anos, fazendo parte da mitologia local. No Japão, para onde foi levada por monges budistas, logo passou a ser usado como símbolo imperial.


Trazido ao ocidente no século XVII, por sua forma singela e de rara beleza, o delicado crisântemo se tornou enormemente popular e seu nome científico, extraído do grego, significa “flor de ouro”, podendo ser associado tanto ao amor quanto à amizade, de acordo com as tradições locais. Apesar de não requerer maiores cuidados, é uma planta que necessita de clima ameno e boa quantidade de água, sendo bastante improvável que consiga crescer em condições tão adversas quanto aquelas verificadas nas savanas africanas.


Na natureza, portanto, dificilmente se veria duas plantas de origem e compleição tão distintas convivendo em harmonia. Já na botânica do jazz, embora semelhante modalidade de simbiose possa até ser rara, existe um belíssimo exemplo que demonstra não ser impossível tal convivência – com inegável proveito para ambas as espécies. É o que ocorre no disco “East Coasting By Charlie Mingus”, onde dois dos maiores ícones do jazz reúnem seus colossais talentos pela primeira e única vez: Charles Mingus e Bill Evans. O baobá Mingus e o crisântemo Evans atuam aqui de forma tão harmônica e integrada que parecem ter sido feitos para viver juntos.


Em 1957, ano da gravação dessa pequena jóia para o selo Bethlehem, o enfezado Charles Mingus já era um músico prá lá de experiente e um respeitado compositor, vindo de trabalhos com os míticos Lionel Hampton, Charlie Parker, Red Norvo, Illinois Jacquet, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Max Roach, Miles Davis, Bud Powell e Lennie Tristano. Passou algum tempo na orquestra de Duke Ellington, mas foi dispensado após uma homérica briga com outro rematado casca-grossa, o trombonista Juan Tizol. Nascido em 1922, em Nogales, no Arizona, e criado em Los Angeles, Mingus jamais deixou de trazer consigo a atmosfera agreste do lugar em que nasceu e criou uma das mais fabulosas obras do jazz, como músico, arranjador, band leader e compositor. Em seu currículo, composições sublimes (Goodbye Pork Pie Hat, My Jelly Roll Soul, Open Letter To The Duke) e discos antológicos (Mingus Ah-um, Pithecantropus Erectus, Blues And Roots) servem para dar uma pequena medida do seu incomensurável talento.


De personalidade oposta e sete anos mais novo que o líder, o introspectivo Bill Evans era, à época, um promissor músico iniciante. Nascido em Nova Jersey e graduado pela Louisiana University, Evans tinha um currículo bem menos alentado que o do contrabaixista. A rigor, somente tinha tocado, até então, com músicos de Nova Iorque, como o clarinetista Tony Scott e o guitarrista Mundell Lowe. Por ocasião da gravação de “East Coasting”, havia gravado um único álbum como líder, o “New Jazz Conceptions”, pelo selo Riverside, e o seu segundo disco, “Everibody Digs Bill Evans”, somente veria a luz do sol em 1958, ano em que também se juntaria a Miles Davis, com quem permaneceria por quase um ano. Dono de um fraseado lírico e de uma inesgotável capacidade de enternecer o ouvinte, Evans é considerado por muitos o pianista mais completo do jazz. Além de músico extraordinário, também é o compositor de alguns clássicos absolutos do repertório jazzístico, como “Waltz For Debby”, “Very Early”, “34 Skidoo” e “RE: Person I Knew”.


Para levar a cabo a empreitada, em um ano em que também deu ao mundo os seminais “The Clown” e “New Tijuana Moods”, Mingus convocou, além de Evans, alguns dos seus mais fervorosos colaboradores: o trombonista Jimmy Knepper (que haveria de experimentar, alguns anos mais tarde, a força dos poderosos punhos do chefe), o saxofonista Shafi Hadi, o trompetista Clarence Shaw e o indefectível Dannie Richmond às baquetas. São seis músicas, das quais cinco compostas pelo líder, além de uma emocionante releitura do standard “Memories Of You” (Blake/Razaf). No cd, relançado em 2005, existem takes alternativos de duas faixas.


“Memories Of You” abre o disco com um clima etéreo, com Knepper, Hadi e Shaw revezando-se em belos solos. Evans extravasa lirismo e sofisticação, fazendo o tapete harmônico para os metais em desfile. No aspecto composicional, é interessante notar que o vulcânico Mingus abre mão de sua habitual complexidade harmônica, presenteando o ouvinte com canções mais lineares (mas nunca óbvias), que demonstram a sua total reverência às tradições da música negra (blues, spirituals, dixieland, etc.). A faixa título evoca a influência de Parker, em um bebop com elevada dose de swing. Richmond exibe a sua competência de sempre e Knepper mostra porque é um dos trombonistas mais versáteis do post-bop. É emocionante ver o trabalho de Evans em um contexto tão bopper e perceber quão completo é esse músico fenomenal. O líder se permite atuar com uma invulgar discrição, limitando-se a fazer a marcação enquanto os demais músicos se esbaldam nos solos.


Com um início mais sinuoso, carregando nas tinturas de blues, “West Coast Ghost” é a mais mingusiana das músicas do disco. A disposição dos instrumentos, que vão se agregando aos poucos, com dissonâncias aqui e ali, mostra que além de compositor maior, Mingus era um arranjador soberbo e a algaravia dos instrumentos, que parecem dialogar a esmo, vai se costurando paulatinamente em torno do baixo. Lindos solos de Hadi, Shaw e Evans dão o complemento final a essa pequena gema sonora.


Na balada Celia, composta em homenagem à esposa, Mingus mostra que sabia ser lírico quando queria. Chama a atenção o majestoso entrosamento entre o piano de Evans e o naipe de metais, em mais um espetáculo de delicadeza e sofisticação melódica. “Conversation” é um blues assentado na força do tripé trombone-trompete-saxofone, com merecido destaque para a linha de baixo, que segura a onda com classe e robustez. Em outro tema puxado para o blues (“Fifty-First Street Blues”, cujo nome não nega a origem), quem se encarrega de manter a base harmônica é Richmond, com direito a viradas sensacionais, enquanto Hadi e Shaw dão um show à parte nos solos.


Trata-se, enfim, de um álbum maravilhoso, onde tradição e modernidade, vigor e delicadeza, linearidade e assimetria, cérebro e coração se equilibram de maneira quase poética. Aqui, o elevado senso harmônico/melódico do líder encontra guarida no seio de uma banda extremamente coesa e altamente dotada do ponto de vista técnico, criando assim um momento especial, onde os astros parecem conspirar para que tudo saia perfeito. Em sua transcendência, o jazz demonstra que mesmo à sombra do mais imponente dos baobás é possível colher-se o mais delicado e oloroso crisântemo.



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PS.: Post dedicado ao amigo Caldas Góis Jr., uma figura humana extraordinária e um grande músico, que tem feito um trabalho hercúleo na divulgação da cultura e da música maranhenses (e que o Matraca Digital possa voltar em breve às nossas telinhas!).



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