NÃO HÁ RATOS EM PADDINGTON HALL
Música e outras coisas

NÃO HÁ RATOS EM PADDINGTON HALL



O pequeno homem de chapéu coco e bigodes espessos parecia pouco à vontade. Havia algo de volátil naquela sala espaçosa e mal iluminada que o incomodava. Era como se os moradores da casa fizessem questão de manter na penumbra os miasmas que poderiam consumir em chamas tudo o que havia restado daquela outrora poderosa família. Os ingleses e seus pudores, pensou, enquanto caminhava por entre a imponente mesa de jantar e duas estátuas em estilo dórico.

Uma dose de estricnina havia tirado a vida de Lorde Paddington. Homicídio? Suicídio? Estava ali para descobrir. Afinal, não poderia deixar de atender um pedido da querida Condessa Romacoff, velha amiga do falecido. Ela havia ido ao seu escritório há alguns dias e lhe relatara as suas suspeitas de que Paddington fora assassinado. A condessa era uma mulher reservada, mas sugeriu ao detetive que a viúva – uma arrivista, segundo ela – teria sido a responsável pelo crime.

Após uma breve troca de olhares com Chesterton, o severo mordomo da família, o detetive belga compreendeu que o homem desejava falar-lhe. Seria possível despistar a escorregadia Lady Paddington, a viúva quase 40 anos mais nova que o marido que acabara de falecer? Sem forçar a situação e manuseando as palavras com cuidado, o homem de formas arredondadas e bochechas rosadas retomou a conversa e lançou uma frase aparentemente casual:

– Se Lorde Paddington era tão precavido como a senhora me disse, certamente deixou instruções acerca de suas últimas vontades...

Um ricto, que poderia ser de raiva ou um mero ajuste da máscara facial, percorreu o rosto esguio da senhora. Aos trinta anos, ainda era uma bela mulher. O detetive a desejou por um momento, mas o desejo foi substituído pelo instinto de preservação. Era uma mulher perigosa aquela. Ambiciosa e muito inteligente. Suas palavras soaram protocolares, mas, ainda assim, repletas de veneno:

– Há apenas um testamento. E apenas dois herdeiros – eu e o jovem Kenneth, seu filho, um dissipador que haverá de perder, em breve, tudo o que vier a receber. Na verdade, ele é o grande beneficiário de toda essa situação. Eu não passo de uma vítima de sua mente degenerada, pois o pai sempre foi permissivo. Meu marido não se furtava a pagar suas dívidas de jogo. Foi isso que quase nos levou à ruína.

Fez uma pausa, aprumou-se e continuou, agora já sem a tentativa de esconder a antipatia pelo enteado:

– Não há instruções e nem muitos bens. Meu marido deixou boa parte de sua fortuna nas mesas de jogo. Seu filho era um estróina, que não descansaria até extrair a última gota do sangue do pai. Por isso Randolph se matou! A vergonha... a vergonha era demais para um homem tão honrado. Vocês franceses não seriam capazes de entender!

O detetive manteve-se impassível. Seus olhos e ouvidos estavam atentos às palavras daquela mulher. Após outra pausa, ela baixou a voz e disse, em tom de confidência:

– Vivíamos de forma modesta, apesar da aparência faustosa desta casa. Como o senhor deve ter percebido, há poucos criados aqui e éramos obrigados a sobreviver com uma renda anual de duas mil libras. Duas mil libras! Anuais! Pretendo me mudar para Londres assim que terminarem os procedimentos do inventário. Kenneth deseja vender a propriedade mais que qualquer coisa. Na verdade...

– Na verdade?

– Na verdade ele era o único que realmente lucraria com a morte do pai. E naquele dia eles tiveram uma forte discussão. Talvez...

O detetive fingiu morder a isca. Mas havia pontos que não batiam em toda aquela história. Duas mil libras não seriam suficientes para prover a vida nada modesta do casal. Havia ouvido falar nos animados convescotes realizados naquela mansão e duvidou que a renda informada fosse suficiente para promover festas tão concorridas. Mas porque ela esconderia a real situação econômica do marido? Solidarizou-se com a jovem viúva, estendeu-lhe a mão roliça, e despediu-se dela:

– Lamento muito. Estou aqui a pedido de uma grande amiga da família e não pretendo causar-lhe qualquer constrangimento. Vim apenas prestar-lhe os meus respeitos. Estarei na Pousada Lonehill por alguns dias. Os médicos recomendaram...

A elegante mulher deslizou pela sala com graça e agilidade. Uma desenvoltura que se situava no limiar da vulgaridade e que não combinava com a sua origem supostamente aristocrática. Antes de sair, o detetive disse:

– Belga.

A mulher não entendeu e perguntou:

– Como?

– Sou belga. Não francês.

A mulher deu de ombros. Já haviam atravessado a porta principal. O detetive saiu da casa, desceu os degraus da imponente escadaria de granito e caminhou, lentamente, até o portão, onde havia deixado a carruagem. Não gostava de automóveis. Achava-os barulhentos e pouco elegantes. O cavalariço o aguardava com um olhar indiferente. Subiu no coche, que sofregamente se afastou da propriedade. Ao percorrer cerca de cem metros, o homem mandou que o cocheiro parasse. Depois de descer do coche, ordenou que o condutor fosse diretamente até a pousada e o esperasse por lá. O tom da voz era firme, mas não autoritário.

O muro da mansão era baixo, mas o detetive também era. Foi-lhe custoso ultrapassar o metro e meio que separava a propriedade do mundo exterior. Antes que pudesse por os pés no chão, mãos fortes o agarraram e o ajudaram a aterrissar sem maiores percalços. Era Chesterton:

– A Condessa Romacoff tinha razão. Você é, realmente, um cavalheiro bastante distinto.

O homem de bigodes agradeceu as palavras gentis e os dois se dirigiram a uma pequena edícula, por trás da casa principal. Havia outras construções na propriedade, incluindo um grande celeiro e uma garagem para os quatro automóveis da família. O mordomo não fez rodeios. Foi simples e direto:

– Minha filha não matou o marido, senhor... Ela é ambiciosa, mas nunca foi burra. Ela sabe que seria a primeira suspeita. E Kenneth é um pródigo, mas completamente inofensivo. Seria incapaz de tramar a morte do próprio pai. Eles discutiram naquele dia, mas nada de grave. Discutiam sempre.

As últimas palavras foram ouvidas com alguma dificuldade. A revelação de que Elizabeth era filha do mordomo bateu-lhe como um soco no estômago. Não estava preparado para isso. Mas estavam explicados os modos quase rudes da viúva. Olhou para o mordomo com uma expressão de curiosidade e este continuou:

– Quando a mãe de Margareth morreu, ela veio morar aqui na mansão. Lorde Paddington era um homem generoso e permitiu que eu a trouxesse. Pouco mais de um ano depois sua esposa faleceu. Tinha uma saúde frágil. Passaram-se mais três anos até que ele pedisse Margareth em casamento...

O velho mordomo tinha os olhos marejados. As lembranças eram vívidas, mas dolorosas.

– Margareth desejava uma vida de luxo e aceitou o pedido. Durante quase dez anos viveram em harmonia, até a chegada de Duncan...

O detetive sacudiu a cabeça a espera de novas informações. Seu cérebro fervia e seus pensamentos eram uma sucessão de idéias sem sentido. Era como se tivesse sido atropelado por uma locomotiva. Murmurou:

– Duncan...

– O motorista da família. Veio recomendado por um sobrinho de Lorde Paddington e logo desenvolveu uma...

– Uma...

– Uma certa afinidade por minha filha.

– E essa afinidade... foi correspondida?

O velho baixou a cabeça. Os poucos cabelos que restavam ali eram brancos como a neve. Nada disse e nem foi necessário.

– Duncan – repetiu o belga em voz baixa.

Depois disso, recompôs-se e perguntou:

– E onde está esse Duncan?

O mordomo ficou calado por algum tempo. Depois respondeu:

– Na noite em que Lorde Paddington foi envenenado, ele viajou para Londres. Está lá e tenho certeza que minha filha irá encontrá-lo. Ela não consegue raciocinar direito... E ele é um belo rapaz. Sedutor. E queria ficar com tudo isto – disse fazendo um gesto largo, como que para mostrar toda a extensão da propriedade – Duncan envenenou Lorde Paddington. Tenho certeza.

Havia convicção na voz do mordomo. O detetive pensou por alguns instantes. Depois, pediu para conhecer a biblioteca do falecido, se não fosse despertar suspeitas.

– Não será problema. Os outros empregados são discretos e minha filha já se recolheu aos seus aposentos. Mas, por favor, não se demore.

A biblioteca era ampla como a sala de jantar, mas mais opressiva. Mesmo com as luzes acesas era lúgubre e nada acolhedora. Sozinho no aposento, o belga examinou, meticulosamente, as gavetas. Depois, os livros. Meia hora depois, saiu da mesma maneira silenciosa e discreta que entrou. O mordomo o acompanhou até a porta dos fundos.

Lá, pediu ao tratador de cavalos que conduzisse o detetive até o final da propriedade. Após alguns minutos de caminhada, os dois homens chegaram aos limites da propriedade. O jovem abriu um pequeno portão de madeira, usado pela criadagem. Não trocaram palavra alguma, até que o belga perguntou:

– Há ratos na propriedade?

Surpreso com a pergunta, o rapaz de rosto sardento e olhos mortiços respondeu:

– Não, senhor. Não há ratos em Paddington Hall.

Fazia frio e o caminho até a cidade era de quase dois quilômetros. O homem de bigode arrependeu-se de ter liberado o cocheiro e maldisse a sua imprevisão. Caminhando pela sebe, reordenou os pensamentos. Um homicídio sempre tem um motivo por trás. Motivos econômicos são poderosos. E motivos amorosos também. Tirou do bolso a pequena carta que havia achado na biblioteca. Alguém havia procurado por ela naquele local, mas não obtivera sucesso. A pessoa fora descuidada e arrumara os livros de maneira desordenada, algo que alguém como Lorde Paddington jamais faria.

Como todos os ingleses das classes mais altas, o velho era previsível. Não foi difícil achar o esconderijo. A carta em que sua ardente mulher combina com o belo motorista a fuga para dali a alguns dias fora interceptada. Mas como? Antes ou depois de ter chegado a Duncan? E porque Elizabeth não fugiu assim mesmo? Estaria querendo proteger alguém? Ou apenas tentando livrar-se de alguma suspeita? Imerso em seus pensamentos, o belga chegou à pequena cidade. De repente, seu rosto se iluminou. Foi até a pousada e fez algumas ligações.

Quinze minutos depois, dirigiu-se ao boticário da cidade, que já o esperava. As apresentações foram breves e o detetive leu, com atenção, a relação de produtos vendidos nos últimos três meses. O livro de anotações era preciso e revelava a personalidade meticulosa do dono da botica. Simpatizou com o homem, que também lhe pareceu discreto e bastante competente. De repente, encontrou o que precisava. Uma quantidade razoável de noz-vômica havia sido adquirida há cerca de quarenta dias.

Sorriu para si mesmo, agradeceu a presteza do farmacêutico e rumou para a estação ferroviária. Assistiu ao longe a fumaça do trem se distanciar e pensou, melancólico: sou o homem que vê o trem passar. Após se identificar ao chefe da estação e confabular rapidamente com ele, confirmou as suas suspeitas. Alguém partira dali para Londres. Tudo começava a fazer sentido. Voltou à pousada e deliciou-se com um prato de faisão ao molho de vinho. A sobremesa não poderia ser mais auspiciosa: figos portugueses. Dulcíssimos. Antes de se recolher, fez mais uma ligação. Para Londres.

No dia seguinte, rumou para a propriedade dos Paddington. Dois policiais o acompanhavam, cortesia, mais uma vez, de outro grande amigo, o influente Lorde Ruffenborgh. O mordomo abriu a porta e o belga pediu-lhe que conduzisse a viúva até ele. Vinte minutos depois, estavam todos na biblioteca. A mulher pediu desculpas pela demora, pois precisava se compor. Maneando a cabeça, o detetive disse, secamente:

– A senhora quis me fazer crer que seu marido cometeu o suicídio. Mas nós dois sabemos que ele foi assassinado!

A mulher manteve-se calma. Apenas um leve tremor nas mãos demonstrava que, por dentro, estava em frangalhos. Disse:

– E o que o faz pensar que meu marido foi assassinado?

– Suicidas, geralmente, deixam cartas...

– Suas suposições são vagas, detetive. Os franceses são conhecidos por seu excesso de imaginação...

– Belga.

– Sim, sim, os belgas também. Mas o que lhe dá a certeza de que Lorde Paddington não se suicidou?

– Não há ratos em Paddington Hall. Mas há alguém que viajou daqui até Londres.

A mulher sentira o golpe. As pernas perderam as forças e ela arriou no sofá. Seu rosto era uma máscara de dor e desespero. Ela apenas murmurou:

– Não é o que o senhor está pensando. Não foi ele... não foi ele...

– Mas a senhora tentou protegê-lo, inclusive mentindo em relação à verdadeira situação econômica de Lorde Paddington...

– Duncan é um homem pobre. Seu único crime foi se apaixonar por mim. Mas ele não matou meu marido! Não matou! Se a notícia de que estávamos tendo um romance viesse à tona, todos iriam pensar que ele havia assassinado Lorde Paddington para ficar comigo e com a herança. E que, por essa razão, fugira para não despertar suspeitas. Por isso eu tentei protegê-lo.

– Não teve medo de ser você mesma acusada do crime?

– Eu não morava nesta casa há pelo menos um ano. Voltei a morar na casa dos empregados. Marianne, a copeira, e Sarah, a cozinheira, estavam comigo na noite em que Lorde Paddington morreu. Mas Duncan não tinha nenhum álibi.

– Então você imaginou que poderia ajudar seu amante incriminando um inocente?

– Não incriminei ninguém. Mas Duncan também é inocente.

– Eu sei disso. Afinal, ele viajou para Londres no mesmo dia em que seu marido foi morto, mas pelo menos dez horas antes. Eu chequei os horários dos trens.

Fazendo um gesto dramático, o pequeno homem dirigiu seu olhar teatral para o outro lado do cômodo. Fixou-se em Chesterton. Foi a vez do mordomo se sentir acuado. Mas manteve a fleuma, embora o tom da voz o traísse. Indagou:

– Como sabe que não foi ele?

– Fui até a estação e ali foi fácil descobrir o horário da viagem. Pelo menos dez horas antes da morte de Lorde Paddington. Isso reforçou a minha suspeita de que o falecido interceptou a carta depois que Duncan a tinha recebido. Por isso o motorista viajou até Londres, pois supunha que Elizabeth viajaria no dia combinado. Ele deve ter ficado decepcionado quando não a viu na estação no dia marcado – disse, agora se dirigindo à mulher.

– E quem teria sido o assassino? Perguntou o cada vez mais trêmulo Chesterton.

– Alguém que tinha um motivo. Alguém que não suportaria ver a própria filha abandonar o casamento com um homem de prestígio e posição, para se unir a alguém de uma classe inferior.

– Você não tem provas disso. Não tem provas, repetiu em um tom monocórdio e resignado. Não tem...

– Não há ratos em Paddington Hall, meu caro. O tratador de cavalos me disse.

– E daí?

– Daí, que razão haveria para que o mordomo da casa comprasse uma grande quantidade de noz-vômica, senão para extrair-lhes os caroços? E que utilidade teriam esses caroços, senão para fabricar estricnina? E para que alguém iria fabricar estricnina se não fosse para matar ratos?

– Ou pessoas... – disse um dos policiais.

– Mas o seu alvo não estava mais aqui, não é mesmo Chesterton? Você mataria o motorista e seria mais fácil difundir a tese de que ele se matara por amor. Mas para isso você precisava esconder as provas de que esse amor não tinha sido correspondido, não é mesmo?

O mordomo manteve-se calado. O belga tirou um papel do bolso e exibiu ao velho, cuja aparência estava ainda mais alquebrada. Falou:

– Você precisava destruir isto para justificar a sua teoria – e exibiu a carta. Você sabia que eles iriam fugir, mas não sabia a data. Quando percebeu que Duncan havia ido embora, você ficou desesperado. Não poderia mais executar o seu plano. E não tinha coragem de matar a própria filha para evitar a vergonha...

O velho arqueava e suas mãos tremiam. Suas forças esvaíam-se, sentia-se como se um vampiro lhe houvesse sugado todo o sangue. O detetive prosseguiu:

– Com a morte de Lorde Paddington, você seria poupado do opróbrio. Se Duncan fosse condenado, tanto melhor. Mas se a polícia engolisse a tese do suicídio e Elizabeth se unisse a Duncan, não haveria problemas. Ela seria uma mulher livre e rica. Mas o que importava era apenas o seu sentimento mesquinho e cruel. Não hesitou em deixá-la viúva. Não hesitou em matar o homem que o empregou por mais de 30 anos. Mas agora a farsa acabou.

– Eu lamento muito. Não queria que fosse assim. Não queria... Mas eu não conseguiria encarar Lorde Paddington se ela se fosse. Não conseguiria... E irrompeu em um pranto sincero. Havia alívio naquele choro e uma boa dose de arrependimento.

A filha lutava para conter dois sentimentos contraditórios: o alívio de saber que o amado não era o culpado e a dor de saber que o responsável pela morte do marido, por quem nutria um afeto genuíno e uma enorme gratidão, fora seu próprio pai. Balbuciou:

– Porque você nunca desconfiou de Kenneth?

– Não descartei a hipótese. Mas confirmei que ele estava distante daqui na noite em que o pai morreu. Como sempre, jogando... Se ele fosse acusado, provavelmente não conseguiria alguém que sustentasse o seu álibi, porque as pessoas que estavam com ele jamais admitiriam isso. Homens de bem e jogatinas não se misturam, não é mesmo? – e deu um sorriso cínico.

– E como teve a certeza de que o assassino foi o meu pai?

– Os mordomos, Madame, são sempre os culpados.

Recolocou o chapéu coco, alisou os bigodes e caminhou até a saída sem olhar para trás. O mordomo não impôs qualquer resistência aos policiais, que o conduziram rapidamente até a viatura. Fazia sol e o dia se prenunciava bastante agradável. Na pousada, um leitão ensopado esperava o voraz detetive belga. Georges Guriot havia solucionado mais um caso.

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Nem só de detetives argutos como Guriot, Poirot e Maigret vive a Bélgica. Célebre pela excelente qualidade de vida de seu povo e pelo ótimo chocolate, este pequeno país já deu ao mundo alguns jazzistas notáveis. Os mais célebres deles são Jean Baptiste Frederic Isidor “Toots” Thielemans e Jean “Django” Reinhardt. Mas há outro belga que merece entrar, com louvor, na galeria dos maiores músicos europeus de jazz: o espetacular Robert “Bobby” Jaspar.

Nascido no dia 20 de fevereiro de 1926, na cidade de Liége, este multiinstrumentista de talento superlativo começou a tocar ainda na infância. Primeiramente o piano e, em seguida, o clarinete. Algum tempo depois, dedicou-se ao aprendizado da flauta e do saxofone tenor. Apaixonou-se pelo jazz durante a adolescência, ao ouvir pelo rádio as célebres orquestras norte-americanas de swing. Lester Young e, algum tempo depois, Charlie Parker são as influências mais visíveis. Ainda garoto montou com o compatriota Toots Thielemans, o guitarrista que mais tarde se tornaria o mais importante gaitista do jazz, um grupo de dixieland.

Em 1950, mudou-se para Paris, onde o ambiente jazzístico era dos mais estimulantes. Ali, juntou-se a jovens músicos belgas e franceses, como René Urtreger, Pierre Michelot, René Thomas, Jacques Pelzer, André Hodeir, Bernard Willen, Henri Renaud e Daniel Humair, entre outros, para celebrar – e tocar – o mais puro jazz. Segundo o crítico Etienne Borgers, Jaspar “rapidamente se tornou uma das figuras centrais do jazz moderno em Paris. Sua técnica incrível e suas improvisações ousadas, seu lirismo e sua constante busca por novas experiências fizeram dele um dos mais aclamados jazzistas europeus dos anos cinqüenta”.

Naquela década era bastante comum encontrar músicos americanos exilados na França, como Sidney Bechet, Kenny Clarke, Buck Clayton, Don Byas ou Bud Powell. Uma jovem cantora e pianista norte-americana despertou o interesse do saxofonista: Blossom Dearie. Os dois se casaram em 1956 e, naquele mesmo ano, o casal decidiu se mudar para os Estados Unidos, fixando-se em Nova Iorque.

Ali, Jaspar se sentiu verdadeiramente em casa e pôde tocar com a nata do jazz. Atuou ao lado de gente como Herbie Mann, J. J. Johnson, George Wallington, Kenny Burrell, Jimmy Raney, John Coltrane, Hank Jones, Milt Jackson, Mal Waldron, Tony Bennett, Chris Connor, Oscar Pettiford, Wynton Kelly, Joe Puma, Sahib Shihab, Toshiko Akiyoshi, Tommy Flanagan, Donald Byrd, Jimmy Meritt, Idrees Sulieman, Chet Baker e dezenas de outros.

Em 1957, o saxofonista foi contratado por Miles Davis, para substituir o grande Sonny Rollins em seu grupo, que incluía também o pianista Tommy Flanagan. Contudo, a parceria não rendeu bons frutos e o belga foi dispensado, sendo que . Coltrane, com quem tocou no disco “Interplay for Two Trumpets And Two Tenors”, gravado naquele mesmo ano, foi o escolhido para substituí-lo.

Em 1961, separado de Dearie e de volta à Europa, liderou um quinteto, juntamente com o amigo René Thomas, de grande prestígio no continente. Quando Chet Baker, que havia sido condenado na Itália por porte de entorpecentes, saiu da prisão, Jaspar o acompanhou no álbum “Chet Is Back”, de 1962. O saxofonista começava a granjear um reconhecimento à altura do seu talento, quando foi arrebatado por um ataque cardíaco fulminante, no dia 28 de fevereiro de 1963. Tinha apenas 37 anos.

Felizmente, sua discografia, que inclui trabalhos para selos como Swing, Vogue, Barclay, Savoy, Columbia, Prestige, Atlantic e Riverside, está razoavelmente bem documentada e ainda é possível encontrar excelentes álbuns no mercado. Um deles é o estupendo “Modern jazz au club St-Germain”. Gravado nos dias 27 e 29 de dezembro de 1955 e lançado originalmente com o título “Memory Of Dick”, pela Barclay, o álbum voltou ao mercado, no formato de cd, em 2000, dentro da série Jazz In Paris, da Universal.

Acompanhando Jaspar, que se divide entre a flauta e o sax tenor, estavam alguns dos mais habilidosos músicos da cena francesa: o pianista René Urtreger, o guitarrista Sacha Distel, o baixista Benoit Quersin e o baterista Jean-Louis Viale. “Bag’s Groove” é o tema escolhido para abrir os trabalhos. A interpretação do quinteto é vigorosa e altamente swingante, com destaque para as acrobacias de Distel, o guitarrista que se tornaria cantor, apresentador de tevê e ícone da cultura francesa nas décadas seguintes.

A balada em tempo médio “Memory of Dick”, do próprio líder, vem a seguir e o grupo mantém a empolgação. Solos inventivos e tecnicamente complexos de Jaspar e Urtreger prendem a atenção do ouvinte. O cativante Distel apresenta uma abordagem bastante relaxada, mais próxima de um Jimmy Raney que de um Grant Green, enquanto o trabalho de Viale, sobretudo com o uso dos pratos, dá coesão rítmica ao tema.

Em “Milestones”, de Miles Davis, percebe-se a importância do bebop na formação dos integrantes do grupo. Urtreger é um dos mais talentosos discípulos de Bud Powell e sua atuação demonstra quão delicada é a tarefa de seguir os passos do mestre, sem abrir mão de seu próprio fraseado – e o pianista se sai muito bem do desafio. “Minor Drops”, do pianista belga Francis Coppieters (incorretamente grafado como Doppieters), também se arrima nas sinuosas veredas do bebop, mas não nega o delicado acento europeu. É, por certo, uma das mais charmosas faixas do disco, com direito a uma exuberante atuação de Jaspar.

Fazendo uso da flauta, Jaspar domina a cena em “I'll Remember April” e mostra as inúmeras possibilidades do instrumento no jazz. Criada pelo trio Gene De Paul, Don Raye e Patricia Johnston, a composição sempre esteve entre as preferidas dos jazzistas, tendo sido gravada por gênios como Charlie Parker, Clifford Brown, Sonny Rollins e Bud Powell. O solo de Viale é esplendoroso.

Uma versão animada e sacolejante de “You Stepped Out Of A Dream” revela, em seus breves três minutos e meio, toda a essência da alegria que deve ser inerente ao jazz. Nada pode ser mais caro ao estilo que o sacrossanto direito de músicos, de quaisquer matizes ou continentes, se reunirem pelo puro prazer de tocar. O diálogo entre o piano e o saxofone é a mais completa tradução dessa alegria e do despojamento próprio de quem ama muito o que faz.

Emerge de “I Can't Get Started” o baladeiro romântico e de enorme sensibilidade que é Jaspar. Com uma sonoridade à Stan Getz e um lirismo descomunal, o saxofonista desnuda a alma em solos de puro arrebatamento. Poucas vezes a canção de Vernon Duke e Ira Gershwin soou tão encantadora. São seis minutos de emoção em estado bruto e a discrição dos coadjuvantes, todos impecáveis, apenas realça o brilhantismo da execução do líder.

Outro momento memorável é a versão de “A Night in Tunisia”, clássico de Dizzy Gillespie, a qual o quinteto imprime um ritmo e um furor criativo ímpares. Atuações soberbas de Quersin e do líder, com direito a solos frenéticos e vigorosos. O álbum encerra em grande estilo e não é à toa que é considerado, por críticos e fãs, um dos momentos mais sublimes da carreira de Jaspar. Melhor dizendo, da carreira de todos os músicos envolvidos.

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