DUAS OU TRÊS PALAVRAS ACERCA DA INFELICIDADE
Música e outras coisas

DUAS OU TRÊS PALAVRAS ACERCA DA INFELICIDADE



Sortudo! Decerto o destino havia pregado uma peça de péssimo gosto naquele homem de cabelos desgrenhados e sujos, que vestia roupas em lastimável estado. Vagarosa, mas tenazmente, sua figura maltrapilha revolvia um grande container de lixo. Um velho par de sapatos bastante gastos e um sobretudo roto, com várias manchas de café e gordura nos punhos e no colarinho, emergiram daquela abjeta coleção de resíduos. Ele deu um arremedo de sorriso, calçou o velho par de sapatos – que, de qualquer modo, estavam em melhor estado que os seus – e pôs o amarfanhado sobretudo. Estava quase contente, pois o frio enregelava-lhe os ossos e dificultava ainda mais a sua já penosa caminhada.

Manteve-se absorto durante alguns segundos e pensou que, assim como aqueles restos que jaziam inúteis no container, ele também havia sido descartado por essa mesma sociedade. O apelido de outrora jamais lhe pareceu tão zombeteiro. Não se demorou em tais pensamentos, pois seria um desperdício de tempo e energia. De fato, quando se extrai do lixo as duas ou três refeições diárias, filosofar acerca da vida e dos seus descaminhos parece ser um insensato exercício de trivialidade.

O frio de Seattle não perdoava hesitações. Alguns poucos minutos podiam fazer a diferença entre a vida e uma pavorosa morte por hipotermia. Acelerou o passo em direção ao seu velho conhecido Seattle's Columbia City Assisted Living Center. Se realmente tivesse sorte, hoje poderia tomar um pouco de sopa quente e, quem sabe, até desfrutar de uma pequena xícara de chocolate.

As mesmas mãos que hoje revolviam, ávidas, os fétidos depósitos de matéria desprezada já se dedicaram a misteres muito mais nobres. Todavia, mesmo sobrevivendo das sobras apodrecidas, mesmo vagando sem rumo certo pelas ruas hostis, mesmo fazendo da degradação o seu improvável lar, mesmo dormindo ao relento ou nos desprezíveis abrigos onde outros miseráveis compartilhavam do mesmo sono sem sonhos, ele ainda guardava dentro de si uma elevada dose de altivez.

Dos velhos tempos, ainda conservava intacta a proverbial sensibilidade. Enternecia-se com o pôr do sol e com o desabrochar das primeiras flores da primavera. Caso lhe fosse dada a chance, ainda seria capaz de acariciar com a mesma doçura as palhetas do saxofone e extrair dali as notas mais sublimes que músico algum, mesmo o mais hábil deles, seria capaz de obter. Mas tal chance jamais lhe seria concedida outra vez.

Se a célebre frase de Tolstói é verdadeira, de que todas as famílias felizes são iguais, mas cada família infeliz o é à sua própria maneira, ele era a prova viva de que são inúmeras as possibilidades de infelicidade a que um homem pode ser submetido. Há a infelicidade que decorre do abandono, aquela que advém da doença, uma outra que nasce da solidão, a que provém de seus próprios demônios interiores, aquela que se origina das escolhas erradas e até mesmo a oriunda da perda de algum ente querido.

Naquela figura alquebrada fizeram morada todas essas espécies de infelicidade. Ele era um homem frágil em um mundo incapaz de tolerar a fragilidade. Acaso fosse possível reescrever a própria história, talvez não tivesse retornado ao seu país em 1970. Teria permanecido em Paris ou em Lausanne, onde jamais lhe faltaram trabalho e respeito. Contudo, a fortuna não costuma bater duas vezes à mesma porta.

Após longos quarenta minutos de uma estafante caminhada ele, finalmente, chega à sede do centro de assistência de Seattle. O dia não havia sido bom para os outros infelizes da sua igualha. Havia uma grande fila para a sopa. Ele não se importava. Agregou-se àquele rol de maltrapilhos silenciosos e tristes e esperou a sua vez. Um vigoroso prato de sopa quente recompensou-lhe a espera. Entretanto, a xícara de chocolate que ele tão ansiosamente aguardara, e com a qual chegara a devanear enquanto estava na fila, não lhe foi oferecida. A bebida havia acabado pouco antes de chegar a sua vez.


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Se existe um músico que pode ser apontado como paradigma de toda a grandeza e de toda a miséria que cerca o jazz, esse músico atende pelo nome de Eli “Lucky” Thompson. Nascido em 16 de junho de 1924, na cidade de Colúmbia, Carolina do Norte, Lucky foi um dos mais melodiosos e inventivos saxofonistas da história do jazz e um dos precursores do uso do sax soprano. Espécie de elo perdido entre a velha escola representada por Coleman Hawkins e Don Byas e a nova escola proposta por Bird e Dexter Gordon, era capaz de transitar com absoluta naturalidade do swing ao bebop, com especial habilidade para tocar baladas.

O primeiro revés veio logo aos cinco anos, quando perdeu a mãe. Durante a infância e a adolescência, sofreu uma vida de privações, somente superadas quando atingiu a idade adulta e pode se dedicar integralmente à música. Tocou com Lionel Hampton, Slam Stewart e Billy Eckstine, em cuja orquestra conheceu Charlie Parker e Dizzy Gillespie – com quem também viria a tocar. Passou algum tempo na orquestra de Count Basie e, posteriormente, na de Stan Kenton. Nos anos 50 firmou seu nome como um confiável músico de apoio, tendo gravado regularmente com Milt Jackson e participou de sessões com Thelonious Monk e Miles Davis.

Por sua versatilidade e pela impossibilidade de ser rotulado, Thompson é daqueles músicos que imprimem a força da sua personalidade em tudo o que fazem. Nas décadas de 50 e 60 residiu por longos períodos na Europa, mas jamais abandonou totalmente o país natal. No início da década de 60, outra grande perda: a morte da mulher. Em 1965 cerrou fileiras ao lado dos Jazz Messengers, para a gravação do excelente Soul Finger, numa formação que incluía, além de Thompson e Blakey, os ótimos John Hicks ao piano e Freddie Hubbard e Lee Morgan nos trompetes. No ano anterior, havia gravado a sua obra-prima, o disco pelo qual será lembrado pela eternidade e além: o fabuloso Lucky Strikes.

Aqui, ao lado de Hank Jones (piano), Richard Davis (baixo) e Connie Key (bateria), Thompson exibe a sua técnica invulgar e a sua excepcional habilidade para as baladas em um álbum simplesmente irrepreensível, talhado para abrilhantar qualquer discoteca. Usando o sax soprano e o tenor, esse músico ímpar constrói uma delicadíssima tapeçaria sonora, que começa com uma versão sublime de “In A Sentimental Mood”, em um clima de absoluto lirismo. O piano de Jones, melífluo e envolvente, emoldura o saxofone de Thompson com emotividade e discrição, características constantes desta sessão.

Thompson também era um compositor de mão cheia. Exceto a já mencionada “In A Sentimental Mood” e “Invitation”, todas as outras músicas são de sua autoria. “Fly With The Wind” é um bebop clássico, acelerado e cheio de variações harmônicas, com o sóbrio Connie Key emulando Art Blakey, mas sem perder um átomo da sua enorme categoria. “Mid-Nite Oil” e “Mumbba Neua”, com seus andamentos serpenteantes, poderiamter sido compostas por Monk, impressão reforçada pelo piano de Jones, que em momento algum resvala na obviedade.

A elegância do saxofonista – quer do ponto de vista da execução, quer da composição – extrapola os níveis habituais de excelência na quase balada “Reminiscent”, um dos pontos altos do disco. Nesta faixa, a integração entre o saxofone e o piano atinge o ápice, ao mesmo tempo em que o baixo de Davis e a bateria de Key, embora discretos, são um exemplo perfeito da importância de uma sessão rítmica à altura dos solistas.

“I Forgot To Remember” é uma balada emocionante, com discretas citações à não menos bela “Tangerine”, na qual Thompson pode exibir sua técnica soberba. Da mesma magnitude, mas com um acento de blues – e um solo de piano magistral – a lindíssima “Prey Loot” é outro grande momento do álbum, que encerra em grande estilo com a suingante “Invitation”, de Bronislaw Kaper, que em alguns momentos parece exalar uma certa fragrância latina, em grande parte graças à excelente intervenção da bateria de Key.

Contrariando o apelido, Eli Lucky Thompson viveu e morreu sob a égide de uma sucessão de tragédias. Ele, que jamais se amoldou aos ditames da indústria fonográfica, foi, pouco a pouco, submergindo em um oceano de solidão e demência. A partir da década de setenta, outras tragédias vieram a se abater sobre ele. Desfez-se do saxofone para pagar dívidas e perambulou por diversas cidades dos Estados Unidos e do Canadá, até se fixar em Seattle. Ali, viveu na indigência quase absoluta, até ser acolhido pelo Seattle's Columbia City Assisted Living Center, em 1994.

Nessa época começou a apresentar os sintomas do mal de Alzheimer, doença que finalmente o arrebataria em 30 de julho de 2005. Uma vida atribulada e um fim indigno para um músico de tão extraordinário, mas completamente coerente com a sua trajetória de vida. Aqui, como em Bird e Powell, o trágico e o sublime, a degradação e a glória convivem como faces de uma mesma moeda.



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