NÃO, ELE NÃO FOI MOTORISTA DE TÁXI... MAS BEM QUE PODERIA TER SIDO!
Música e outras coisas

NÃO, ELE NÃO FOI MOTORISTA DE TÁXI... MAS BEM QUE PODERIA TER SIDO!



McCoy Alfred Tyner parece ter nascido predestinado ao piano. Não apenas porque sua mãe era pianista e lhe ministrou, ainda na infância, os primeiros rudimentos de educação musical. Mas também porque alguns dos seus vizinhos eram ninguém menos que os irmãos Bud e Richie Powell, que às vezes vinham à casa em que vivia o pequeno Alfred para praticar o instrumento, gentilmente cedido pela Sra. Tyner. Como poderia o jovem Tyner escapar do destino glorioso que lhe havia sido traçado pelas Parcas?

O garoto, que veio ao mundo no dia 11 de dezembro de 1938, em Filadélfia, vivia em um ambiente familiar arejado e de enorme liberdade, em todos os sentidos – musical, política e religiosa. Seu irmão Jarvis, por exemplo, foi um dos mais destacados membros do Partido Comunista dos EUA e um aguerrido manifestante em prol dos direitos civis. O próprio McCoy chegou a adotar a religião islâmica por um período (ocasião em que mudou seu nome para Sulaimon Saud). Tocar jazz era, portanto, algo natural.

Além de ouvir os discos do antigo vizinho Powell, Tyner encontrou em Thelonious Monk um vislumbre do pianista que gostaria de ser um dia. Também pôde ver, ao vivo, grandes nomes do jazz que se apresentavam na cidade natal. Jamais esqueceu a noite em que assistiu a um concerto do grande Art Tatum (em uma sessão que incluía a orquestra de Stan Kenton e o grupo de Charlie Parker). Outro grande nome do piano que pôde assistir ao vivo foi o lendário Earl Hines.

Muitos anos depois, quando Tyner já integrava o mítico quarteto de John Coltrane e fazia com o combo uma excursão pela Europa, ouviu de Hines (que também se apresentava no Velho Continente) a seguinte história. Nos anos 20, o veterano pianista era atração fixa em um speakeasy de propriedade de Al Capone, em Chicago. Depois de um assalto a um banco, um dos capangas do gângster entrou no clube com um saco de dinheiro roubado e entregou a Hines, dizendo, ameaçador: “Tome conta desse dinheiro”. Assustado, o pianista enterrou o saco de dinheiro no próprio jardim, guardando-o para o “dono” Capone.

Voltemos aos anos de formação de Tyner. Fora o aprendizado em casa, ele somente começou a estudar música seriamente a partir dos treze anos, primeiramente na West Philadelphia Music School e depois na Granoff School of Music. Um pouco mais tarde, já participava ativamente da cena musical da Filadélfia, percorrendo o circuito de clubes e casas noturnas e participando de gigs com grandes nomes do jazz como Lee Morgan, Benny Golson, Cal Massey, Mickey Roker e o próprio Coltrane.

O quinteto de Golson foi o seu primeiro trabalho fixo, quando o pianista foi recrutando para uma excursão pela Califórnia, em 1959. Depois disso, o saxofonista fundou, ao lado de Art Fermer, o célebre Jazztet, onde Tyner tocou por quase um ano. Em 1960, a grande virada na carreira: foi convidado por Coltrane para integrar o seu quarteto, em substituição a Steve Kuhn. Logo de cara, McCoy entrava no estúdio para participar do elogiado “My Favorite Things”, gravado para a Atlantic e um dos maiores sucessos comerciais de Trane.

Foram quase seis anos de interação absoluta e aprendizado mútuo entre o jovem pianista e o veterano saxofonista. O quarteto mágico de Coltrane incluía o baixista Jimmy Garrison (que substituiu Art Davis) e o baterista Elvin Jones e dentre as muitas obras primas, legou ao mundo um álbum que rivaliza com “Kind Of Blue” e “Time Out” as atenções de crítica e público como um dos mais importantes de todos os tempos: o espiritualizado “A Love Supreme”.

Ao mesmo tempo em que integrava o quarteto de Coltrane, Tyner também desenvolvia uma respeitável carreira solo, gravando para o selo Impulse, geralmente sob o formato de trio, incluindo uma aclamada homenagem a Duke Ellington. E McCoy ainda achava tempo para participar, como sideman, de discos de Curtis Fuller, Milt Jackson, Freddie Hubbard, Grant Green, Julian Priester, Joe Henderson, Art Blakey, Hank Mobley e Lee Morgan, entre outros.

A fase na Impulse é primorosa, embora este “Reaching Fourth” seja um álbum relativamente obscuro. E exatamente por não ser tão badalado como “Inception” ou “Nights Of Ballads And Blues”, merece ser ouvido com extrema atenção. Primeiramente por causa excepcional qualidade do som, a cargo do cultuado Rudy Van Gelder, em cujo estúdio o álbum foi gravado, no dia 14 de novembro de 1962. Em seguida, porque ao lado do pianista estão os formidáveis Henry Grimes e Roy Haynes. E, finalmente, porque é uma excelente oportunidade de ouvir um McCoy Tyner bastante diferente daquele que, à época, pilotava os teclados para Coltrane.

Não é que aqui Tyner tenha deixado de se apresentar como o improvisador nato e vigoroso que sempre foi. Ou que tenha abandonado a enorme gama de texturas harmônicas que sempre soube incorporar ao seu fraseado. Mas, especialmente neste álbum, composto basicamente de standards, o pianista verte para as 88 teclas tamanha quantidade de lirismo e sensibilidade, que quase não conseguimos associá-lo ao endiabrado pianista que então assombrava o mundo a bordo do combo de Trane.

A faixa que abre o disco, e que também lhe dá nome, é da lavra do líder. Energética, pulsante e cheia de alternativas harmônicas, é um tema essencialmente tributário do bebop de Bud Powell, só que executado sob a perspectiva de um dos mais destacados nomes do post bop. É uma composição moderna (Jarrett e Corea, mais novos, por certo, beberam dessa fonte), mas não propriamente transgressora. E dificilmente o líder conseguiria o mesmo impacto se não tivesse ao seu lado dois músicos tão arrojados quanto Grimes, cujo solo com o arco é soberbo, e Haynes.

“Goodbye” é o arquétipo da balada classuda, que não renega o estilo elegante do autor, o maestro Gordon Jenkins. Romântico até a medula, Tyner cria uma atmosfera lúdica e arrebatadora, que em alguns momentos chega a lembrar o grande Erroll Garner. Delicadíssima atuação de Haynes, enquanto Grimes mantém-se imaculadamente sóbrio e discreto.

“Theme For Ernie” é uma homenagem de Fred Lacey (um quase desconhecido guitarrista da Filadélfia, que tocou com Lester Young) ao saxofonista Ernie Henry (outro músico pouco conhecido e que faleceu precocemente, em 1957, após ter tocado com Thelonious Monk, Wynton Kelly, Benny Golson, Paul Chambers e Dizzy Gillespie). Trata-se de uma graciosa balada em tempo médio, na qual Tyner revira pelo avesso a melodia e, por vezes, faz o seu piano mágico soar como um órgão. A conferir, a extraordinária performance de Grimes, que perpetra um solo devastador.

No segundo tema de sua autoria, “Blues Back”, McCoy exibe o seu legendário conhecimento do blues, numa interpretação vigorosa e cheia de feeling. Baixo e bateria ajudam a percorrer o Delta do Mississipi, injetando, aqui e acolá, valiosas pitadas de gospel, soul e funk, criando um caleidoscópio sonoro de rara beleza. Mais uma vez, Grimes – mais conhecido por sua estreita vinculação com o jazz de vanguarda – nos ajuda perceber o quanto a tradição do blues foi importante para consolidação do idioma proposto por Ornete Coleman e a sua livre improvisação.

Uma interpretação extremamente inventiva e bluesy de “Old Devil Moon” torna quase irreconhecível o antigo tema de Burton Lane e Yip Harburg. O piano de Tyner é repleto de swing, incisivo e vibrante, enquanto o baixo de Grimes, incansável, mantém a forma da composição quase intacta. O infalível Haynes, por sua vez, conjuga sutileza e vivacidade em sua impecável execução.

Encerra o álbum uma entusiasmada versão de “Have You Met Miss Jones”, da dupla Richard Rodgers & Lorenz Hart. Doses cavalares de histamina e swing se espalham pelos alto-falantes, com destaque para a infecciosa batida criada por Haynes e suas escovas encantadas. Tyner parece um polvo, tamanha a velocidade que imprime ao seu toque, adicionando, no último terço da faixa, um irresistível tempero latino. Por certo, há outros discos de Tyner bem mais badalados e muito mais conhecidos, mas pouquíssimos deles são tão encantadores quanto esta pequena jóia musical.

Embora vivesse um momento bastante estável, do ponto de vista profissional, o inquieto McCoy não estava satisfeito e queria fazer algo completamente diferente. Deixou a Impulse em 1964 e passou alguns anos sem lançar álbuns em seu próprio nome (somente voltaria a gravar, como líder, em 1967, quando lançou, pela Blue Note, o extraordinário “The Real McCoy”). Em 1965, nova reviravolta na carreira: saiu do quarteto de Coltrane, por discordar da abordagem extremamente free que o saxofonista passara a imprimir ao seu trabalho.

Sobre os motivos da saída, Tyner foi de uma desconcertante sinceridade: “Eu não conseguia me ver fazendo qualquer contribuição para aquela música. Tudo o que eu ouvia era uma porção de barulho. Eu não sentia nada em relação à música que estávamos fazendo e se eu não tiver um sentimento especial para com a música que estou tocando, eu simplesmente não toco”.

Ele então resolveu partir para uma carreira solo, cujo início foi bastante atribulado. Decerto, enquanto atuava como freelancer, McCoy acompanhou, entre outros, Wayne Shorter, Bobby Hutcherson, J. J. Johnson, Sonny Stitt, Lou Donaldson e Donald Byrd. Reza a lenda que, nesse período, ele chegou a tocar com o casal Ike e Tina Turner, mas em uma entrevista à Jazz Review, Tyner desfez o mal entendido.

Na verdade, era um amigo dele, o saxofonista Azar Lawrence, que tocava com os Turner e que, em uma entrevista, declarou que o pianista também havia feito alguns trabalhos para o casal – coisa que jamais aconteceu (às gargalhadas, Tyner afirma que se tivesse integrado a banda de Ike e Tina Turner, então na crista da onda, não teria passado por tantas dificuldades financeiras na segunda metade dos anos 60).

Na mesma entrevista, Tyner desfez outro engano corrente a seu respeito. De fato, muitas pessoas afirmam que ele, em meados dos anos 60, se viu obrigado a trabalhar como motorista de táxi, em Nova Iorque, a fim de complementar o orçamento doméstico. Na verdade, por conta do aperto financeiro em que vivia, ele realmente chegou a cogitar essa hipótese, mas jamais chegou a fazê-lo – sequer tirou a licença para esse fim.

De qualquer forma, apesar de tocar regularmente com grandes nomes do jazz e de ser contratado por uma gravadora respeitável como a Blue Note, Tyner enfrentava sérias dificuldades para sobreviver com dignidade. Somente em 1972, quando foi contratado pela Milestone, é que passou a receber o merecido reconhecimento de público e crítica. Seus álbuns pela nova gravadora, como “Sahara” (indicado ao Grammy), “Song For My Lady” e “Trident”, tiveram ótimas vendagens (para os padrões do jazz, é claro) e evidenciam a aproximação de McCoy com a música africana e oriental.

Além de pianista e compositor fabuloso, Tyner se mostrou um grande descobridor de novos talentos. Por seus combos passaram músicos que hoje figuram entre os mais destacados jazzistas contemporâneos, como Gary Bartz, Charnett Moffett, George Adams, Avery Sharpe, Steve Turre e o brasileiro Cláudio Roditi, entre outros. De 1972 para cá, Tyner vem gravando com extrema regularidade (além da Milestone, gravou para a Columbia, Elektra, Enja e Telarc, além de ter feito alguns discos para as velhas conhecidas Blue Note e Impulse) e acumulando prêmios e honrarias, como o Grammy (ganho em quatro oportunidades) e o título de Jazz Master, dado pela National Endowment for the Arts em 2002.

Extremamente ativo, ainda teve tempo para criar o próprio selo, o McCoy Tyner Music (associado à Blue Note), pelo qual lançou os elogiados “Quartet” (de 2007, com Joe Lovano, Christian McBride e Jeff “Tain” Watts) e “Guitars” (de 2008, no qual, juntamente com os extraordinários Ron Carter e Jack DeJohnette, divide o estúdio com os guitarristas Bill Frisell, Marc Ribot, John Scofield e Derek Trucks, além do banjoísta Bela Fleck).

Também tem se dedicado à elaboração de arranjos, inclusive para big bands, e tem participado de festivais pelo mundo, sempre esbanjando carisma, bom humor e vitalidade. Não é à toa que a crítica especializada aponta seu nome como um dos pianistas mais influentes surgidos nos últimos 50 anos, ombreando-se a Bill Evans, Herbie Hancock e Keith Jarrett. Aos 71 anos, McCoy Tyner faz parte daquele cada vez mais raro contingente de lendas vivas do jazz. Que ele continue assim por muitos e muitos anos!

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Na última postagem do ano, que coincide com a chegada do primeiro Réveillon do JAZZ + BOSSA, quis homenagear um músico especial. McCoy Tyner, com sua trajetória de vida e de entrega total à causa do jazz é esse músico especial. Que sua força de vontade ante à adversidade e a sua persistência nos inspire a todos e seja o prenúncio de um 2010 repleto de paz, saúde, ventura e realizações para todos os amigos que honram o JAZZ + BOSSA com suas presenças. FELIZ ANO NOVO!!!!




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