À SOMBRA DO VULCÃO
Música e outras coisas

À SOMBRA DO VULCÃO



Quando Elvin Ray Jones apareceu no mundo do jazz, os adjetivos que costumavam ser usados para definir suas atuações, invariavelmente, eram eletrizante, vulcânico, explosivo. Todos, obviamente, bastante apropriados e os anos vindouros iriam cuidar de colocá-lo no panteão dos maiores e mais influentes bateristas de todas as épocas. Pertencente a uma das mais nobres linhagens do jazz, o irmão caçula dos luminares Thad e Hank Jones nasceu no dia 09 de setembro de 1927, em Pontiac, no Michigan.

A genética dos Jones logo o impeliu para a vida musical e ele começou a dedilhar o piano com cerca de sete anos de idade, influenciado pelo irmão Hank. O pai, Henry, era empregado da General Motors e fazia parte do coral da igreja freqüentada pela família. A mãe, Olivia, costumava ouvir em casa gravações de música gospel. O blues e o jazz não eram vistos com bons olhos em casa, pois o pai acreditava que essas músicas provinham do Tinhoso em pessoa.

Sem dar muita bola para a rigidez musical paterna, Elvin foi se apaixonando pelo jazz e na adolescência resolveu se dedicar integralmente à bateria, instrumento que o empolgava desde a tenra infância. Quando tinha apenas quatro anos, ele assistiu a um espetáculo circense e ficou assombrado com a agilidade do baterista. Seus primeiros ídolos foram os fenomenais Jo Jones e Shadow Wilson e, já como baterista, ele fez parte de diversas orquestras escolares. Em 1946, o jovem ingressa no serviço militar, permanecendo no exército até 1949.

Nas bandas da corporação, se destaca por seu estilo vibrante e poderoso, tanto que, ao retornar à vida civil, resolveu seguir a carreira musical. Sem dinheiro, pediu 25 dólares emprestados a uma irmã, para comprar a sua primeira bateria, mas o investimento compensou: em pouquíssimo tempo, Elvin já era chamado para assumir o seu primeiro emprego como músico profissional.

Seu primeiro empregador foi o saxofonista Billy Mitchell, fato que o obrigou a se mudar para a vizinha Detroit, em 1950. A banda de Mitchell era atração fixa do clube Bluebird Inn e o saxofonista ficou tão impressionado com a habilidade do baterista que não hesitou em contratar seus irmãos mais velhos, Thad e Hank, para integrarem a sua orquestra.

O estimulante cenário musical da cidade permitiu que, em pouco tempo, Elvin fosse um dos mais requisitados bateristas da Grand River Street, onde ficavam os clubes de jazz. Durante sua estada na Cidade dos Motores, participou de gigs com talentosos músicos locais como Tommy Flanagan, Pepper Adams, Kenny Burrell, Yusef Leteef e Curtis Fuller, além de estrelas de passagem pela cidade, como Charlie Parker, Sonny Stitt, Miles Davis e Wardell Gray.

Em 1955, Elvin viajou até Nova Iorque a fim de fazer um teste para ingressar na banda de Benny Goodman, mas não foi aprovado. O baterista não se abateu, pois dias após o exame recebeu um convite de Charles Mingus, para se juntar ao seu grupo. Logo, logo, estaria tocando com outros nomes de peso, como Art Farmer, Teddy Charles, Gil Evans, Bobby Jaspar, Frank Wess, Bud Powell, Harry “Sweets” Edison, Elmo Hope e Miles Davis. Seus parceiros mais constantes foram J. J. Johnson (cuja banda integrou de 1956 a 1957) e Donald Byrd (com quem permaneceu durante quase todo o ano de 1958).

Em novembro de 1957, Elvin participa de sua primeira gravação de impacto, acompanhando Sonny Rollins no seminal “A Night at the Village Vanguard” (Blue Note). Os dois, mais o baixista Wilbur Ware, criaram um disco que é considerado um verdadeiro clássico do jazz contemporâneo, no qual elaboram interpretações altamente instigantes de antigos standards como “I Can't Get Started” e “Old Devil Moon”, além de temas emblemáticos do bebop, como “Four” e “Woody'N You”. No disco, Donald Bailey e PeteLaRoca substituem, em algumas poucas faixas, Ware e Jones, respectivamente.

Em 1960, Jones teve a grande oportunidade de sua carreira, ao ser contratado para compor o mitológico quarteto de John Coltrane. Tendo ainda o impecável Jimmy Garrison no contrabaixo e o exuberante McCoy Tyner no piano, o grupo se converteria em um dos mais bem-sucedidos, inventivos e influentes da história do jazz, dando ao mundo gemas como “Coltrane Plays The Blues” (1960), “My Favorite Things” (1961) e a obra-prima “A Love Supreme” (1964), sendo os dois primeiros para a Atlantic e o último para a Impulse.

Mesmo fazendo parte de um dos mais disputados pequenos grupos dos anos 60, Jones nunca deixou de trabalhar como acompanhante, marcando presença em álbuns de nomes como Bob Brookmeyer, Freddie Hubbard, Jimmy Woods, Grant Green, Roland Kirk, Joe Henderson, Wayne Shorter, Larry Young, Barry Harris e muitos mais. Versátil e criativo, Elvin era capaz de atuar com igual desenvoltura ao lado de um dos artífices do free jazz sessentista, como Andrew Hill, ou de um bem-sucedido astro do soul jazz, como Stanley Turrentine.

A parceria com Coltrane exauriu-se em 1966. Jones partiu para outros projetos e Rashied Ali, que pilotava a segunda bateria do grupo desde o ano anterior, ficou sozinho no posto. Elvin trabalhou algum tempo na banda do venerando Earl Hines, participou, por algumas semanas, da orquestra de Duke Ellington, fez gravações sob a liderança de Ornette Coleman, Lee Konitz, Larry Coryell, Bill Evans e Chick Corea e ensaiou uma reunião com o antigo parceiro McCoy Tyner, no excelente “Real McCoy” (Blue Note, 1967).

Jones jamais poupou elogios ao antigo empregador e nunca escondeu a importância de Trane para o seu próprio desenvolvimento musical. Em uma entrevista, declarou: “John foi uma espécie de catalisador do meu estilo. A experiência de tocar com ele me ajudou a encontrar a minha própria maneira de tocar bateria e aguçou imensamente a minha musicalidade”.

Em 1968, o baterista se uniu ao saxofonista Joe Farrell e a seu ex-colega Jimmy Garrison, para montar um trio, o qual deixou um álbum registrado o elogiado “Puttin’ It Together” (Blue Note, 1968). Foi o seu primeiro disco pela mítica gravadora de Alfred Lion e até 1973, quando o contrato foi encerrado, ele lançaria mais sete álbuns, todos com ótima repercussão perante a crítica especializada. Outros discos bastante recomendados são os dois volumes de “Live at The Lighthouse”, ambos de 1973, e que apresentam os jovens saxofonistas Steve Grossman, então com 21 anos, e Dave Liebman, com 26.

Como líder, um álbum se destaca em sua respeitável discografia, espalhada por selos como Riverside, Atlantic, Evidence, Half Note, Denon, MPS, Blackhawk, Enja, Landmark, Storyville e a já mencionada Blue Note: o estupendo “Dear Mr. John C.”, uma emocionante homenagem ao então empregador John Coltrane. Gravado entre os dias 23 e 25 de fevereiro de 1965, o álbum conta com as presenças iluminadas de Sir Roland Hanna e Hank Jones se revezando ao piano (o primeiro toca nas três primeiras faixas e o segundo nas outras sete), Charlie Mariano nos saxes alto e tenor e Richard Davis no contrabaixo.

A faixa escolhida para abrir os trabalhos foi “Dear John C.”, de Bob Hammer e Bob Thiele. Profunda e intrigante, a composição serpenteia por entre as veredas do post-bop e do blues. Embora não negue a influência da linguagem coltraneana, ela foge do hermetismo que marcou os últimos anos do saxofonista e tem uma estrutura que lembra “Milestones”, de Miles Davis. O piano luminoso de Hanna e o surpreendente Mariano são os destaques mais evidentes, mas a percussão impetuosa do líder também merece ser ouvida com toda a atenção.

A climática “Ballade”, mais um tema de Bob Hammer, traz um Elvin contido, minimalista, que usa com parcimônia as escovas e pincela os pratos com a delicadeza de um beija-flor. Um dos mais belos temas do jazz, “Love Bird”, de autoria do antigo patrão Charles Mingus é uma pungente homenagem a Charlie Parker. A ousada versão do quarteto, que privilegia um andamento mais veloz, realça a intimidade de seus membros com a sintaxe bop, especialmente o esfuziante Mariano.

Imortalizada por Chet Baker, a doce “Everything Happens to Me”, foi composta por Matt Dennis e Thomas Adair e a atuação pungente de Mariano é antológica. Em seguida, é a vez da impressionista “Smoke Rings”, fruto da parceria entre Gene Gifford e Ned Washington. Davis tem uma sonoridade acolchoada, envolvente e profundamente melodiosa e é o grande destaque individual. A bordo do sax alto, Mariano transborda seu proverbial lirismo e exibe suas qualidades de excepcional executante de baladas. O mano Hank, sempre elegante, dá uma dimensão elegíaca a esse blues eloqüente e robusto.

“This Love of Mine” é uma balada em tempo médio, com tinturas de blues, composta por Frank Sinatra, em parceria com os obscuros Henry Sanicolav e Sol Parker. Mariano cria uma sonoridade áspera e crua, que remete aos sofrimentos amorosos que Ava Gardner impôs a “The Voice”. Os improvisos de Davis e sua sonoridade opulenta são empolgantes e o líder, que usa tanto as baquetas quanto as escovas, dá uma verdadeira aula de polirritmia e de domínio dos mistérios da percussão.

Verdadeiro clássico do bebop, “Anthropology” foi composta pelos gênios Charlie Parker e Dizzy Gillespie e a versão do quarteto é um dos pontos altos do disco. Em clima de jam session e executado com despojamento e espontaneidade, o tema apresenta ótimos solos por parte de Mariano e Hank, e uma intrincada construção rítmica por parte de Davis, que usa o arco com a habitual maestria, e Elvin. Outra balada, “Feeling Good” foi composta por Leslie Bricusse e Anthony Newley. Com uma melodia sofisticada e grande apelo sentimental, ela apresenta atuações memoráveis de Mariano e Hank, cujos diálogos são travados na linguagem universal do lirismo. Elvin, soberano, conduz a percussão com graça e delicadeza.

“Fantazm” é uma bela, porém pouco conhecida, composição de Duke Ellington, inspirada nos ritmos afro-caribenhos, em especial o calipso, mas com algumas pitadas de música oriental, graças à abordgem sibilante de Mariano. Elvin incorpora as nuances percussivas do lado de cá do Equador e sua execução é, a um só tempo, rica e sofisticada. O encerramento fica a cargo da animada “That Five-Four Bang”, terceiro tema de Hammer incluído no disco.

Trata-se de uma gravação extraordinária, que mereceu do crítico Michael G. Nastos, do site Allmusic, a seguinte análise: “Com a musicalidade em alto nível, ‘Dear John C.’ precisa ser revisitado pelas novas gerações de bateristas, estudantes e fãs de jazz em geral. Ouvindo esse álbum, descobrimos como se faz um ótimo trabalho em equipe, como valores musicais podem ser compartilhados em benefício da qualidade, como a dinâmica do grupo pode atingir novos parâmetros sem que isso prejudique a coesão do grupo. Parece que, ao longo dos anos, esse disco se tornou um pouco subestimado, o que é uma tremenda injustiça”.

O prestígio de Jones ante o mundo do jazz o conduziu, naturalmente, à liderança de seus próprios pequenos grupos, como os incensados “Jazz Machine” e “Oregon”. E por tais grupos passariam nomes de peso como os saxofonistas Pepper Adams, Sonny Fortune, George Coleman e Frank Foster, os trompetistas Lee Morgan e Terumasa Hino, os pianistas Kenny Barron, Dollar Brand, Kenny Kirkland e Tommy Flanagan, e os contrabaixistas Chip Jackson, Reggie Workman, George Mraz e Wilbur Little.

Como sideman, ele pode ser ouvido em gravações de malucos geniais, como Phineas Newborn (“Harlem Blues” e “Please, Send Me Someone To Love”, ambos de 1969 e gravados para a Contemporary), Stan Getz (“The Peacocks”, Columbia, 1975) e Art Peper (“The Complete Village Vanguard Sessions”, Contemporary, 1977). Também fez parte do “Summit Meeting”, um poderoso octeto liderado por Clark Terry e James Moody na segunda metade da década de 70.

A influência de Elvin extrapolou as fronteiras do jazz e alcançou o rock e a música pop. Sumidades como Ginger Baker (do Cream) e Mitch Mitchell (do trio de Jimmy Hendrix, que o chamava de “Meu Elvin Jones”) eram seus admiradores confessos e sempre que tinham oportunidade, faziam questão de ressaltar as suas qualidades. Não por acaso, a Life Magazine chegou a lhe atribuir o epíteto de “Maior Baterista do Mundo”. Seu nome consta de diversos Halls of Fame, como o da Percussive Arts Society, da Modern Drummer Magazine e da Downbeat Magazine.

A presença de Jones no universo da cultura pop está bem sintetizada por sua breve, porém marcante, participação no filme “Zachariah”, um western psicodélico de 1971, produzido e dirigido por George Englund. No filme, ele interpreta o pistoleiro Job Cain que, após matar um adversário em um duelo, dentro de um saloon, comemora o feito com um portentoso solo de bateria. O filme é estrelado por John Rubinstein e pelo jovem Don Johnson, em início de carreira, e conta com a participação da banda “Country Joe and the Fish”.

O baterista se notabilizou por ser um ótimo descobridor de novos talentos e alguns dos seus ex-comandados atualmente brilham no cenário jazzístico, como é o caso de Joshua Redman, Pat LaBarbera, Javon Jackson, Nicholas Payton e Delfeayo Marsalis. O hoje celebrado Ravi Coltrane, filho do ex-empregador John Coltrane e saxofonista como o pai, teve algumas de suas primeiras oportunidades profissionais nos grupos de Elvin.

Jones faleceu no dia 18 de maio de 2004, na cidade de Englewood, Nova Jérsei, em decorrência de uma parada cardíaca. O baterista já vinha apresentando problemas de saúde há algum tempo e nos últimos dois anos era obrigado a usar um balão de oxigênio durante as suas energéticas apresentações. Ele era figurinha fácil em festivais de jazz ao redor do planeta, e os de Juan-les-Pins, Montreux, Viena, Glastonbury, Montreal, Red Sea (realizado em Eilat, Israel), Chicago e Estoril, foram alguns dos que participou.

O importante crítico Leonard Feather escreveu acerca da importância de Elvin para o desenvolvimento da bateria jazzística: “Sua principal conquista foi a criação do que poderia ser chamado de ‘círculo de som’, um continuum em que nenhuma batida era, necessariamente, indicada por um sotaque específico. Sua pegada era extremamente dinâmica e ele sempre foi ritmicamente fundamental para todos os grupos dos quais fez parte”.

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