INTEGRIDADE E AMOR À MÚSICA: A RECEITA DE IKE QUEBEC
Música e outras coisas

INTEGRIDADE E AMOR À MÚSICA: A RECEITA DE IKE QUEBEC



Ike Abrams Quebec pode ser considerado um saxofonista da velha escola. Contemporâneo de Coleman Hawkins (e discípulo confesso deste), Arnett Cobb, Don Byas, Illinois Jacquet, Gene Ammons e Ben Webster, sua sonoridade é bastante próxima da destes titãs. À exceção de Hawkins, nenhum destes músicos é considerado um inovador, mas não há dúvidas de que todos, historicamente ligados ao swing, ajudaram abrir caminho para a revolução do bebop (e alguns deles mergulharam de cabeça no novo estilo, como foi o caso de Ammons).

Nascido em Newark, Nova Jérsei, no dia 17 de agosto de 1918, seu primeiro instrumento foi o piano, trocado pelo sax tenor ainda no início dos anos 40. Segundo o próprio Ike, a troca, que se revelou bastante acertada, ocorreu porque ele jamais conseguiria tocar como o ídolo Teddy Wilson. De qualquer forma, o swing ganhou um dos seus mais confiáveis músicos, capaz de alternar grasnados e sussurros com igual competência, e a sua antológica capacidade de tocar baladas o coloca no mesmo nível do já citado Ben Webster e de Benny Carter.

Ainda nos primórdios da década de 40, Ike acompanhou Frankie Newton, Cab Calloway, Hot Lips Page, Roy Eldridge, Jonah Jones, Trummy Young, Ella Fitzgerald, Bucky Clayton, Benny Carter, Roy Eldridge e o próprio Coleman Hawkins. Nesse período, conheceu Kenny Clarke, aproximando-se, graças à amizade com o baterista, do pessoal do bebop, que então deixava pontuava nos clubes da histórica Rua 52.

Também nessa época, iniciou uma relação bastante estreita com a Blue Note. Primeiro, gravou alguns singles em 45 rpm para o selo, onde se destacam “Blue Harlem”, “Facin’ The Face” e “Everything Happens To Me”. O ótimo relacionamento com Alfred Lion permitiu a Quebec que levasse para a gravadora duas das mais promissoras estrelas que então pontuavam no circuito bop de Nova Iorque: Thelonious Monk e Bud Powell.

No início dos anos 50, Quebec amargou o ostracismo, por conta de seu envolvimento com as drogas. Realizou pouquíssimas gravações, mas, ao final daquela década, o saxofonista retornaria ao meio musical em grande estilo e se consolidaria como um dos mais importantes executivos da gravadora, assumindo as funções de A&R (Artists and Repertoire) e se responsabilizando pelos arranjos de diversos álbuns.

Também atuou como sideman em discos de importantes nomes da Blue Note, como Jimmy Smith, Grant Green, The Three Sounds e Sonny Clark, e gravou alguns belíssimos álbuns pela gravadora em seu próprio nome. Um deles é o fabuloso “Blue And Sentimental”, gravado nos dias 16 e 23 de dezembro de 1961, nos estúdios de Rudy Van Gelder.

Os acompanhantes são Grant Green (guitarra), Paul Chambers (contrabaixo) e Philly Joe Jones (bateria), sendo que em uma faixa (“Count Every Star”) a formação é a seguinte: Grant Green (guitarra), Sonny Clark (piano), Sam Jones (contrabaixo) e Louis Hayes (bateria). A qualidade do som, como todos os discos da série RVG (este foi reeditado em 2007, após permanecer um bom tempo fora de catálogo) é esplendorosa.

Quebec surgiu para o jazz durante a era do swing, mas a sua formação musical congrega muito do blues e de outras manifestações tradicionais da música negra norte-americana, sobretudo os spirituals. Green é um guitarrista que bebeu em fontes semelhantes, daí a interação entre os dois ser virtualmente telepática. Na faixa título (de Count Basie), por exemplo, a dupla eleva o blues tradicional a um padrão de requinte melódico difícil de ser atingido, onde o tom lamentoso do saxofone casa com perfeição com a aveludada guitarra de Green.

Dois temas de Quebec – “Minor Impulse” e “Like” – exibem um pouco da sua habilidade composicional. Ambas têm em comum o ligeiro acento de blues e a complexidade harmônica, tributária dos melhores dias da Rua 52. A sincronia entre Paul Chambers e Philly Joe Jones é outro ponto que merece atenção – a base rítmica é vibrante, mas em nenhum momento se mostra invasiva.

Green apresenta uma composição de sua lavra, o denso e comovente “Blues For Charlie” (uma justíssima homenagem ao mestre Charlie Christian), completamente imerso na tradição eletrificada de Chicago – não faria feio no repertório de guitarristas viscerais como B. B. King, Albert King ou Buddy Guy. A destacar, o fato de que, em alguns momentos, Green consegue fazer sua guitarra soar muito parecida com um órgão, e o solo devastador de Quebec.

Há espaço também para as baladas dolorosamente românticas, uma das especialidades de Quebec. “Don't Take Your Love From Me”, por exemplo, vem impregnada de melancolia e lirismo. É como uma daquelas confissões de amor mal sucedido, em que o amante preterido, encharcado de dor e tristeza, transfere para os incontáveis copos de uísque e maços de cigarro toda a frustração e raiva de quem se vê desprezado.

Em outra balada nada menos que espetacular, “Count Every Star” (aqui é o piano plangente de Clark que ajuda a manter o clima enfumaçado das madrugadas insones), o diálogo da solidão outra vez se faz presente. O dedilhar da guitarra de Green capta a fragilidade dos amores perdidos e a enorme elegância de Quebec parece repetir a célebre frase de Vinícius de que são demais os perigos dessa vida para quem tem paixão. Clark acaricia as 88 teclas com uma volúpia delicada, elegante, como somente os grandes entre os grandes são capazes de fazer.

E a paixão e a entrega total e absoluta à música são características muito marcantes na obra de Quebec. Basta ouvir a alegria contagiante que ele imprime na tradicionalíssima “That Old Black Magic”, pérola da ourivesaria de Harold Harlen e Johnny Mercer. A guitarra mezzo-órgão de Green enche de groove a faixa, e o líder toca com um vigor e uma histamina típico de um garoto em início de carreira. O veterano Jones dá uma aula de swing, ritmo e precisão, elaborando um trabalho espetacular com os pratos.

O entusiasmo continua na releitura de “It's Alright With Me”, conduzida em um tempo mais rápido que o habitual, com um Quebec destilando solos incendiários, como se possuísse sete fôlegos. Philly Joe fica mais que à vontade em contextos assim e manda muitíssimo bem, abusando das viradas. Green atira doses fartas de gasolina no incêndio e mostra porque é dos mais talentosos e inspirados guitarristas de todos os tempos.

Para quem quiser entender um pouco mais sobre a linha evolutiva do jazz, suas raízes fincadas no blues, o swing e as revoluções que o sucederam – como o bebop e o hard bop – esse álbum é nada menos que obrigatório. Ike Quebec soube transitar por todas essas nuances e, ao final dessa viagem musical, deu de presente aos amantes do jazz um dos mais belos exemplos da grandiosidade da arte popular maior.

Lamentavelmente, Quebec morreria poucos pouco mais de um ano depois dessas sessões, no dia 16 de janeiro de 1963, em Nova Iorque, em decorrência de um câncer no pulmão – ironia máxima para alguém cujo sopro sempre foi extremamente robusto e vigoroso. Foi substituído, com igual brilhantismo, por Duke Pearson no departamento de A&R da Blue Note e praticamente todos os seus poucos – mas indispensáveis – álbuns foram relançados pela gravadora.

Sobre o saxofonista, o crítico Leonard Feather escreveu: “Embora tenha permanecido em relativa obscuridade, ele nunca foi obrigado a voltar para casa, ou a usar a pintura, a carpintaria ou o volante de um táxi como um meio de subsistência. A música foi e ainda é sua profissão e sua vida. Os discos em 45 RPM lançados pela Blue Note nos anos 40 são um importante lembrete dessa convicção”. Uma trajetória de integridade e amor à música.



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