Garage: um clássico contemporâneo
Música e outras coisas

Garage: um clássico contemporâneo





Uma década após seu lançamento, Garage, álbum-síntese do power trio escandinavo The Thing, volta às prateleiras. Agora em versão vinil (originalmente foi lançado em CD em 2004, pelo extinto selo Smalltown Superjazz), Garage é um dos discos mais intensos editados neste século e item obrigatório para quem se interessa por free music.





Garage é o terceiro título do trio formado por Mats Gustafsson (saxes), Ingebrigt Haker Flaten (baixo) e Paal Nilssen-Love (bateria). O grupo estreou em 2000, com o disco “The Thing” – título extraído de um tema do cornetista e pioneiro do free jazz Don Cherry. Para esta nova edição de Garage, o material foi remixado e masterizado, sendo que a sonoridade se tornou um pouco diferente, como pode ser notado especialmente na faixa que abre o conjunto, “Art Star”. Gravado de forma analógica nos dias 3 e 4 de janeiro de 2004, o álbum traz de fato um ar garageiro, cru, que intensifica as revisitações aos universos rock e free jazzístico. Garage é composto por sete temas, sendo três versões para composições vindas do rock (“Art Star”, “Aluminum” e “Have Love Will Travel”), duas releituras da seara do free jazz (“Haunted” e “Eine Kleine Marschmusik”) e duas criações próprias (“Hey Flask” e “Garage”). Esse mix (rock, free jazz, improvisação) se tornaria uma das características marcantes do trio.




“Art Star”, do grupo novaiorquino Yeah Yeah Yeahs, que abre o disco, foi por algum tempo a música mais executada pelo trio em suas apresentações. Sendo uma releitura instrumental, fica por conta do sax barítono de Gustafsson emular, mas de forma demolidora, o cantarolar de Karen O da faixa original, operando em um crescendo, elevando a voltagem a cada repetição do tema estruturalmente simples criado pelo Yeah Yeah Yeahs. Para esta nova edição de Garage, a sequência das faixas foi alterada. Agora, “Have Love Will Travel”, canção de 1959 de Richard Berry imortalizada alguns anos depois pelo The Sonics, aparece como segundo tema – essa é a única faixa do álbum que o The Thing ainda toca, às vezes, ao vivo. O terceiro tema vindo do rock é uma releitura sombria da estranha “Aluminum”, do White Stripes; o sax barítono cria com o robusto e lento dedilhado de Haker Flaten uma atmosfera densa, que explode lá pelos 1m45, com o sax e a percussão cada vez mais flamejantes, até o desfecho arrastado.




Se as opções roqueiras escapam do óbvio, a revisitação ao universo free jazzístico traz ainda mais surpresas. “Haunted” é um tema do trompetista Norman Howard, figura que aparece apenas em duas gravações, uma com Albert Ayler (“Spirits”) e outra em seu único disco, “Burn Baby Burn”, registrado em 68; depois disso, nunca mais se ouviu falar dele. “Haunted” é uma peça dolorida e de elevada tensão que o The Thing consegue sintetizar em cerca de seis minutos – a versão original, ainda mais lenta, conta com dez minutos. Sem dúvida é a peça mais emocionante do álbum. Já “Eine Kleine Marschmusik” o The Thing foi resgatar no primeiro trabalho solístico do mestre Peter Brotzmann, “Solo”, de 76. Originalmente é uma peça muito curiosa: focada no sax alto, centra-se em um tema bem simples, em ritmo de marcha, que, após girar em torno de um núcleo melódico que vai se desconstruindo a cada repetição, cede repentinamente espaço para um piano (!?), que fecha o minuto final da peça e encerra o álbum. A revisitação do trio escandinavo, que conta com o dobro de tamanho (cerca de seis minutos), faz uma opção diferente: inicia com uma introdução arrastada, que se estende por quase dois minutos, até desembocar no tema marcial de Brotzmann. Daí para frente, a peça apenas cresce em fúria. O álbum é completado com duas composições do The Thing, “Hey Flask”, mais contemplativa e densa, e a faixa-título “Garage”, intensíssima exibição free impro de quase 12 minutos, bem em linha ao que o trio gosta de apresentar nos palcos.




Garage é um álbum fundamental, que representa um pouco do que de melhor a free music tem produzido na contemporaneidade. Com esse registro, o The Thing conseguiu sintetizar seu pensamento e suas propostas. Disco obrigatório em qualquer discoteca que se ocupe da música livre e intensa criada nesses tempos. 
   



Garage *****
The Thing
Trost Records / The Thing Records






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*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura, tendo se especializado na obra do escritor português António Lobo Antunes. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; também foi correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e jazz para o Valor Econômico.
  





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