FANGIO, SENNA SCHUMACHER E... JOHNNY GRIFFIN?
Música e outras coisas

FANGIO, SENNA SCHUMACHER E... JOHNNY GRIFFIN?



Reza a lenda do jazz que, em meados dos anos 40, Lionel Hampton precisava, desesperadamente, de um tenorista para a sua orquestra. O titular, Jay Peters, havia sido convocado para o serviço militar e, com uma série de concertos já agendados, seria impossível ao vibrafonista esperar muito tempo.


A solução foi contratar, meio que às cegas, um jovem saxofonista de apenas 17 anos e que havia concluído o ensino médio na semana anterior. Apesar das ótimas referências, o bandleader jamais havia ouvido o garoto tocar. Feito um breve contato por telefone, Hampton mandou-lhe apenas o dinheiro da passagem, pedindo-lhe que fosse a Toledo, Ohio, onde a orquestra se apresentaria na noite seguinte.


Chegando ao local a poucos minutos da apresentação, o empolgado rapaz se dirigiu até o local em que os outros músicos faziam o aquecimento e se apresentou:


- Sr. Hampton, eu sou John Griffin, o novo saxofonista da orquestra.


Ao que Hamp retrucou:


- Tudo bem meu filho, junte-se à rapaziada. Cadê o seu tenor?


E o subitamente apavorado Griffin limitou-se a gaguejar:


- Te-te-te-tenor? Ma-ma-ma-mas eu não toco sax tenor. Eu toco sax alto!


Bem, de fato não se sabe se o conteúdo da conversa foi esse mesmo ou se incluiu uma série de impropérios por parte do desesperado Hampton. O certo é que Griffin, literalmente pôs a viola no saco (no caso, o sax alto) e voltou para Chicago, sua cidade natal, onde, não se sabe como, arranjou um velho saxofone Conn.


Mesmo sem jamais haver tocado o sax tenor antes, dedicou-se com tamanha seriedade ao aprendizado que em menos de uma semana já dominava completamente o instrumento. Poucos dias depois, apresentou-se novamente a Hampton, fez uma rápida exibição e pronto: um dos mais talentosos saxofonistas de todos os tempos estava mais do que pronto para iniciar a sua brilhante carreira!


O episódio dá bem uma idéia da tenacidade e da dedicação de John Arnold Griffin III à causa do jazz. Nascido em 24 de abril de 1928, o garoto cresceu em um ambiente em que se respirava música: a mãe era pianista e na igreja local e o pai era trompetista amador. Em casa, além dos tradicionais gospels e spiritual, a família ouvia incessantemente blues e jazz. O legendário baixista Milt Hinton, amigo da família, costumava aparecer na casa dos Griffin e encantava o pequeno Johnny com suas deliciosas histórias sobre os grandes nomes do jazz.


Pequeno, no caso de Griffin, não é força de expressão: dono de um físico franzino, ele compensaria a baixa estatura com uma assombrosa capacidade de tocar o saxofone a uma velocidade supersônica, o que lhe valeu o apelido de Little Giant e, posteriormente o título de “saxofonista mais rápido do mundo”. Mas, embora tivesse como ídolos Ben Webster, Don Byas e Johnny Hodges, o saxofone não foi o primeiro instrumento a cair nas graças de Johnny: aos seis anos começou os estudos de piano e, um pouco mais tarde, resolveu aprender guitarra, instrumento que tocava na igreja freqüentada pela família.


Aos treze, recebeu as primeiras lições de clarinete na DuSable High School, tendo como primeiro professor Walter Dyett, renomado violinista que também era o diretor musical da escola e que foi professor de jazzistas de peso, como Gene Ammons, Nat King Cole, Dinah Washington, Richard Davis, Von Freeman, John Gilmore, Eddie Harris, Johnny Hartman, Benny Green, Clifford Jordan, Julian Priester e Wilbur Ware, entre muitos outros. Pelas mãos do rigoroso Dyett, Griffin passou por praticamente toda a família dos sopros, incluindo o oboé e a trompa, até se decidir pelo sax alto.


Embora sua formação musical fosse bastante eclética, Griffin sentia que o jazz de então estagnava e não propunha nada de novo. O swing dava sinais de exaustão e não havia no horizonte uma forma de expressão musical que traduzisse as inquietações de toda uma geração de jovens instrumentistas. A “revelação” veio ao ouvir uma versão, em um 78 rotações, de “Hootie Blues”, com a orquestra de Jay McShann. O saxofonista tocava absolutamente diferente de qualquer outra coisa que o jovem Griffin já tivesse ouvido e a identificação com aquela música foi imediata: nascia ali a admiração incondicional por Charlie Parker. As sementes do bebop estavam plantadas e haveriam de florescer em breve.


Com apenas 15 anos, Griffin iniciava sua vida profissional tocando com o bluesman T-Bone Walker, em diversos clubes de Chicago. Foi por conta do trabalho com Walker que Griffin foi convidado para trabalhar na orquestra de Lionel Hampton, em junho de 1945. O saxofonista permaneceria na big band até julho de 1947 e embora tenha participado de inúmeras gravações para selos como MCA e Decca, uma, em especial, fez um estrondoso sucesso: um 78rpm, de Bing Crosby, acompanhado pela orquestra de Hamp, com “Pinetop’s Boogie Woogie” e com “On The Sunny Side Of The Street”.


Após deixar a orquestra de Hampton, Griffin mudou-se para Nova Iorque, onde fundou um sexteto, ao lado do ex-companheiro Joe Morris. A banda era atração fixa do clube Café Society e incluía o trombonista Matthew Gee, o pianista Elmo Hope, o baixista Percy Heath e o baterista Philly Joe Jones. Por intermédio de Hope, Griffin foi apresentado a Bud Powell e Thelonious Monk, que se tornariam grandes amigos do saxofonista.


No final da década de 40, Griffin tocou com Tony Mayo, Arnett Cobb e Jo Jones, até ser convocado para servir o exército, em 1951. Inicialmente, Griffin e mais alguns oficiais negros seriam destacados para combater na Guerra da Coréia. Contudo, a sorte bafejou o Little Giant que, após uma apresentação com a orquestra do exército, foi destacado para integrar uma orquestra baseada no Havaí, porque esta precisava de um oboísta. Desse modo, ele escapou de ir para o front e ter o mesmo destino que seus ex-companheiros de batalhão, quase todos mortos em combate.


Retornando à vida civil em 1953, Griffin passou alguns anos em Chicago, voltando a morar em Nova Iorque em março de 1957, a convite de Art Blakey, para integrar os seus Jazz Messengers, em uma formação que incluía Spanky DeBrest, Sam Dockery, Bill Hardman e Jackie McLean. Um dos grandes álbuns dos Messengers, “A Night In Tunisia” (Atlantic, 1957), foi gravado nesse período.


No ano anterior, havia gravado para a Blue Note o seu primeiro álbum como líder, chamado “Introducing Johnny Griffin”. Pela mesma gravadora, lançaria em 1957 o antológico “A Blowing Session”, ao lado de uma seleção de feras que incluía Lee Morgan, John Coltrane, Hank Mobley, Wynton Kelly, Paul Chambers e o patrão Art Blakey.


Paralelamente, desenvolveu uma prolífica carreira como freelancer e vieram, então, participações em álbuns de gente como Junior Mance, Wilbur Ware, Clark Terry, Wynton Kelly, Blue Mitchell, Ira Sullivan, Chet Baker, Machito, Philly Joe Jones, Nat Adderley, Ahmed Abdul-Malik, Randy Weston, Tadd Dameron, Wes Montgomery e muitos mais. Por seus conjuntos passaram figuras importantes, como Donald Byrd, Art Taylor, Pepper Adams, Barry Harris, Ron Carter, Harold Mabern, e incontáveis outros.


No início de 1958, Griffin uniu-se ao quarteto do pianista, e velho amigo, Thelonius Monk, substituindo John Coltrane. Demonstrando ser um saxofonista de rara habilidade e bastante versátil, Griffin adequou-se à perfeição às sinuosas peculiaridades harmônicas de Monk e a parceria rendeu alguns álbuns importantes, como “Misterioso” e “Thelonious In Action: Recorded At The Five Spot Café”, ambos pela Riverside em 1958.


No final daquele ano, retornou a Chicago, onde se apresentava regularmente em clubes e boates locais, embora não deixasse de vir a Nova Iorque, a fim de participar de gravações, seja como líder, seja como sideman. Um dos seus discos mais extraordinários – embora dos menos conhecidos – é “Way Out!”, gravado nos dias 26 3 27 de fevereiro de 1958.


Secundado pelos fabulosos Kenny Drew (piano), Wilbur Ware (baixo) e Philly Joe Jones (bateria), o disco encontra Griffin no auge de sua forma, esbanjando vitalidade, talento e criatividade. Todas as faixas, à exceção de “Cherokee”, são de autoria de compositores de Chicago.


O blues “Where Is Your Overcoat, Baby?” abre os trabalhos com uma atuação soberba de Ware, responsável por um dos mais belos solos do disco, atacando as cordas do seu contrabaixo com ferocidade e arrojo. O piano de Drew aqui é inquieto, arisco, metálico, aproximando-se das peripécias monkianas. Jones, como sempre, mantém uma relação tórrida e orgânica com a bateria, executando passagens marciais com extrema competência. Griffin não fica atrás e hipnotiza os ouvidos com uma abordagem envolvente, mestrando que não existe, necessariamente, incompatibilidade entre velocidade e sutileza.


Improvisador nato, o líder exibe a sua técnica colossal em “Hot Sausage”, de Jodi Christian. Não é à toa que o mestre Pedro “Apóstolo” Cardoso assim o define: “Johnny Griffin foi saxofonista de lirismo bem incisivo, com som elegante, cálido e ainda assim com acentuada dose de “acidez”, fogoso e brilhante. O “Little Giant” foi executante de tessitura plena de contrastes, suportada por uma técnica altamente superior à média dos tenoristas, que nos faz descobrir toda a dimensão da sonoridade do sax tenor”.


“Sunny Monday”, de John Hines, é uma balada nada convencional, impregnada de elementos de valsa mas com inegável apelo ao blues em várias passagens. O sax do líder reina absoluto, às vezes soando indócil, às vezes romântico, mas sempre com muita fluência. Drew entrega um solo arrebatador, talvez o mais lírico do álbum, enquanto Jones se encarrega de mostrar porque é considerado um mestre na arte da bateria.


“Cherokee” sempre foi considerada um verdadeiro desafio aos mais habilidosos intérpretes, especialmente por conta das interpretações de Charlie Parker, que são um verdadeiro paradigma do bebop. A versão de Griffin é de um dinamismo vulcânico. Com o seu swing arrebatador, sua velocidade inacreditável e sua capacidade ímpar de esmiuçar cada possibilidade harmônica de um tema, o saxofonista se impõe como uma das vozes mais instigantes do jazz. Seus solos são caudalosos, magnéticos, intensos, devastadores. Destaque também para a estupenda atuação de Jones, capaz de transpor para a bateria toda a inquietude e a ousadia do líder.


Mais um tema de Hines, “Terry’s Tunes” é um blues em tempo médio, cheio de groove. A facilidade com que Griffin alterna os graves e os agudos e os seus inacreditáveis malabarismos sonoros deixam o ouvinte boquiaberto. O articulado Drew é outro músico com enorme intimidade com a sintaxe do blues e também com a tradição pianística do stride. O baixo de Ware é arredio, malandro, consegue envolver sem fazer nenhum esforço – coisa que só os grandes dentre os grandes são capazes de fazer – e o seu diálogo com Griffin, no estilo chamado e resposta, é um dos momentos mais emocionantes do álbum.


“Little John”, que encerra o disco, é uma típica quase-balada, daquelas que se ouve estalando os dedos e balançando a cabeça. A técnica superior de Griffin se revela em sua inteireza, com suas típicas alterações de registro, passando dos graves aos agudos em fração de segundo, sem perder a cadência. Drew, seja no acompanhamento, seja no solo repleto de blues, é um pianista que concilia o uso inteligente dos espaços com um swing devastador. Philly e Ware, cujo solo é primoroso, transmitem segurança e coesão.


Entre 1960 e 1962, Griffin manteve um quinteto com o também tenorista Eddie Lockjaw Davis, que gozou de grande popularidade e gravou alguns ótimos álbuns, para selos como Fantasy, Jazzland e Prestige. Destaque para o fabuloso “Looking At Monk”, de 1961, onde os saxofonistas prestam tributo ao gênio composicional de Thelonious Monk. Com eles, estavam Junior Mance (piano) e dois ex-colaboradores de Monk: Larry Gales (baixo) e Ben Riley (bateria).


Em 1963, o Little Giant decidiu, assim como muitos outros jazzistas da época, se mudar para a Europa, estabelecendo-se, primeiramente, em Paris. Contribuíram para a decisão o execrável racismo que ainda contaminava a sociedade norte-americana, problemas de ordem familiar e fiscal, além do descontentamento com o espaço que o chamado free jazz vinha ganhando, o que reduzia ainda mais as já rarefeitas oportunidades de trabalho nos Estados Unidos.


Griffin permaneceu por cerca de seis meses como atração fixa do clube Blue Note, em Paris. A partir daí, realizou concertos por toda a Europa, incluindo Alemanha, Holanda, Bélgica, Itália, Espanha, Suécia, Dinamarca, Inglaterra e outros. Em 1964 tocou com Bud Powell e no ano seguinte fez uma série de apresentações ao lado de Wes Montgomery.


Sua carreira se consolidava e ele tocou com músicos europeus de renome, como os contrabaixistas Pierre Michelot, Guy Hayat e Niels-Henning Ørsted Pedersen, os pianistas Martial Solal, Francy Boland, Franco D’Andrea e Tete Montoliou e os bateristas Alex Riel, Daniel Humair e Jacques Gervais e os trompetistas Dusko Gojkovic e Palle Mikkelborg. Também trabalhou com outros músicos expatriados, como Jimmy Woode, Art Taylor, Benny Bailey, Horace Parlan, Idrees Sulieman, Dexter Gordon, Duke Jordan e muitos outros.


Em 1967 integrou-se à Fancy Boland – Kenny Clarke Big Band, com quem gravou diversos álbuns. No mesmo ano, acompanhou o amigo Thelonious Monk em uma excursão européia. Em 1970, nova mudança, desta feita para a cidade de Bergambacht, na Holanda, onde se casaria com a holandesa Miriam. Alguns anos mais tarde, o irrequieto Griffin retornaria à França, fixando-se, em definitivo, em Mauprevior uma pequena cidade localizada a cerca de 400 quilômetros de Paris.


A participação em festivais era uma constante na vida do saxofonista, que, em 1975, fez apresentações memoráveis em Montreux, com as bandas de Dizzy Gillespie e Count Basie. Antibes, Umbria, Montreal, Ljubliana, Atlanta, Marciac foram outros festivais importantes, nos quais Griffin deixou a sua marca. Ainda durante os anos 70, ele resgatou a antiga parceria com Eddie Lockjaw Davis. Sua extensa discografia está registrada em selos como EmArcy, Galaxy, Black Lion, Storyville, Gitanes, Verve, SteepleChase, além, é claro, dos álbuns clássicos para a Prestige, Riverside e Blue Note.


Em 1978, fez um retorno triunfal aos Estados Unidos, com apresentações que foram sucesso de público e crítica, especialmente por ocasião dos concertos dados no Carnegie Hall e no Ann Arbor Jazz Festival, ao lado de Dexter Gordon. A partir daí, Griffin voltou todos os anos ao país natal, sempre por ocasião do seu aniversário, no mês de abril, apresentando-se, religiosamente, em Chicago e Nova Iorque, mas sempre retornando ao que chamava de “meu amado campo francês”.


Dono de uma personalidade afável e bem humorada, Griffin era um exímio contador de estórias e era considerado pela cantora Dee Dee Bridgewater, que também reside na França, como “um verdadeiro anjo do jazz”. Esse anjo retornou ao convívio celestial no dia 25 de julho de 2008, aos 80 anos, após sofrer um ataque cardíaco. Sua última apresentação aconteceu quatro dias antes, no dia 21 de julho, em Hyéres, mas a sua obra está imortalizada nas centenas de gravações que ele deixou, boa parte delas em catálogo e disponível nas melhores casas virtuais do ramo.

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