ALLONS ENFANTS DE LA PATRIE OU A FRANÇA TAMBÉM SABE SWINGAR
Música e outras coisas

ALLONS ENFANTS DE LA PATRIE OU A FRANÇA TAMBÉM SABE SWINGAR






Os franceses têm um caso de amor com o jazz desde sempre. Apesar do seu reconhecido (diria até caricatural) nacionalismo, os franceses receberam de braços abertos aquela música alegre e sensual que vinha do outro lado do Atlântico, no início dos anos 30. Não por acaso, o mais importante combo jazzístico não americano, o Quintette du Hot Club de France, surgiu na terra de Asterix. Ali pontuavam dois dos maiores nomes do jazz de todos os tempos: o guitarrista belga Django Reinhardt e o violinista francês Stéphane Grapelli.


Durante a II Guerra Mundial, o jazz foi, ao lado da Marselhesa, a trilha sonora da resistência francesa. Nos bailes quase clandestinos, as canções das grandes orquestras norte-americanas aqueciam os corações das pessoas e ajudavam os franceses a manter um pouco de auto-estima, ante a violenta ocupação nazista. Além disso, antes e depois da grande guerra, inúmeros jazzistas encontraram na França um lugar para viver e professar sua arte, como ocorreu com Bill Coleman, Sidney Bechet, Bud Powell, Kenny Clarke e muitos outros.


Da união entre alguns eminentes músicos americanos e franceses, nasceu o álbum “Afternoon in Paris”, uma pequena obra-prima, cuja audição é um verdadeiro deleite para os sentidos. Capitaneando a nau, o pianista John Lewis, americano, e o guitarrista Sacha Distel, francês, estabelecem um diálogo musical de rara beleza, nesse álbum gravado entre 4 e 7 de dezembro de 1956. Coadjuvando os anfitriões, estão o saxofonista franco-americano Barney Wilen (que gravou com luminares como Miles Davis e Art Blakey e, na época, contava com apenas 19 anos), os baixistas Pierre Michelot e Percy Heath, que atuam em três faixas cada, o mesmo sucedendo com os bateristas Kenny Clarke e Connie Key.


John Aaron Lewis dispensa apresentações. Educador, compositor, diretor musical e cabeça pensante por trás do Modern Jazz Quartet, é um dos pilares do jazz moderno, tendo participado ativamente da criação do cool jazz, ao lado de Miles Davis, Gerry Mulligan e Lennie Tristano. Esteve presente nos momentos iniciais do bebop tendo tocado com Charlie Parker no final dos anos 40 e passado algum tempo na orquestra de Dizzy Gillespie. Sua reputação cresceu após emprestar seu talento como músico e arranjador para a gravação do célebre “Birth of Cool”, um dos álbuns fundamentais da história do jazz. Na ourivesaria sonora de Lewis eram trabalhados os mais variados estilos, desde o bebop ortodoxo da linha Parker até o flerte com a música erudita da chamada “third stream” (uma curiosa versão das bachianas brasileiras foi gravada no disco “The Sheriff”, do MJQ). Tudo feito com muita sobriedade e elegância, pois apesar de ser um mestre em seu instrumento, Lewis não era dado a rompantes virtuosísticos como, por exemplo, um Erroll Garner.


Sacha Distel pertence a outra geração de músicos e trazia consigo uma outra concepção musical, transitando com bastante fluência entre a chanson francesa, o jazz e a música pop. Bonitão, talentoso e extremamente simpático, fez grande sucesso nos anos 50/60, inclusive como cantor. É o autor de “The Good Life”, imortalizada na voz de Tony Bennet. Tocou com grandes nomes do jazz, como Louis Armstrong e Dizzy Gillespie, apresentou um programa bastante popular na televisão francesa e, mais que tudo, teve um ardente caso de amor com a belíssima Brigitte Bardott.


A união de músicos de temperamentos tão díspares funcionou à perfeição. Exatamente por mostrar um Lewis muito menos contido que nas gravações com o MJQ, este “Afternoon in Paris” surpreende e encanta tanto. A sofisticação do pianista em nenhum momento é posta de lado, mas, talvez inspirado pela espontaneidade do jovem parceiro, o severo Jonh Lewis toca com a alegria e o despojamento de um iniciante. O disco abre com uma delicada versão de “I Cover the Waterfront”, com destaque para a guitarra melodiosa de Distel, cujo estilo econômico e fluido se assemelha ao de Jim Hall ou Jimmy Raney.


Na calorosa “Django”, percebe-se com clareza a diferença entre as concepções harmônicas de Lewis no MJQ e em gravações “avulsas”. Aqui, o pianista está mais relaxado, criando uma atmosfera de puro swing, para que o guitarrista francês possa brilhar nos solos, sem deixar de lado a pegada de blues. Outro destaque é a canção que dá título ao álbum, composta por Lewis, na qual o pianista exercita todo o seu domínio do idioma cool, com espaço para uma linha de baixo quase hipnótica, a cargo do francês Pierre Michelot. O ponto alto do disco é, sem dúvida, a versão arrebatadora de “Dear Old Stockholm”, extraída do folclore escandinavo e incorporada ao repertório jazzístico graças às gravações de Stan Getz e Miles Davis.


Aqui todas as loas vão para o jovem saxofonista Wilen, que esbanja classe e vigor em solos estonteantes e ajuda a desenvolver o clima harmônico sugerido pelo piano de Lewis, com seu som caudaloso e sem arestas. O lirismo que impõe a seu fraseado, e que serve de guia aos demais membros da banda, revela um músico maduro e de alta personalidade, não deixando o ouvinte perceber que se trata de um garoto de apenas 19 anos. A seção rítmica alinhava uma expressiva tintura de blues – é a mágica geografia da música, capaz de fazer desaguar no Lago Mälaren as sinuosas águas do Mississipi.


Esses predicados fazem de “Afternoon in Paris” um disco especial, que merece ser ouvido muitas e muitas vezes, não apenas por ser uma verdadeira declaração de amor a Paris, mas também por se revelar um libelo contra a intolerância e a xenofobia. Ali, brancos e negros, de países e culturas distintas, interagem fraternalmente, tecendo um documento vivo da capacidade do jazz de falar aos ouvidos de todos os povos do mundo.



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