Como esperado, John Zorn & Masada nos brindaram com um excepcional concerto.
Como previsto, foi um equívoco a escolha do Cine Joia para abrigá-los.
O Masada está distante da faceta rocker de Zorn, não está destinado a ser apreciado em pé, tendo que se acotovelar com a vizinhança, com gente passando ininterruptamente de um lado a outro, com o burburinho incessante sem dar um segundo de pausa sequer... Enquanto o público esperava pelo início do concerto, o som ambiente mostrava o despreparo da casa em relação ao que viria, mergulhando até o pescoço no clichê: no repeat, Coltrane tocando A Love Supreme! Para surpresa de muitos, o público variado não chegou a lotar a casa: muitos jovens com ar roqueiro; senhores e senhoras bem arrumados atraídos pela palavra jazz ou convocados pelo co-organizador Centro da Cultura Judaica; o pessoal sempre presente na cena free; e até alguma “celebridade” perdida, como a jornalista Mônica Waldvogel: uma audiência diversificada que não costuma ser assídua nesse tipo de show.
Atento ao que o esperava, Zorn solicitou que o serviço de bar fosse interrompido durante o concerto. E quem conhece o músico, nem precisava de aviso: não fotografem/filmem, o cara não suporta isso. E esse é um direito do artista. Mas ninguém está preocupado com esse tipo de "frescura". No decorrer da apresentação, impaciente, Zorn teve que discutir seguidamente com alguém do público (no vídeo abaixo) grudado no palco –devia ser um grande fã do saxofonista! Tão ansioso estava que não podia nem respeitar o pedido do artista...– que, ao que parece, insistia em filmar/fotografar o show, mesmo que seu “ídolo” não desejasse que isso ocorresse. Não estava do lado, mas estão dizendo por aí que o saxofonista, cansado de falar em vão, agradeceu ao rapaz com uma singela cusparada... (ps: segundo comentário anônimo deixado há pouco, o que fez Zorn perder a paciência de vez foi uma "luz AF (infra)" que um cara estava apontando para a cara dele. E o Zorn teria cuspido no cara errado...)
(Zorn & Masada. Live, São Paulo. 17/3/2012)
O Masada não é o PainKiller, tampouco se assemelha ao Naked City. Não representa o Zorn de fratura rocker. Foi feito para ser apreciado em outra esfera: sua complexidade estrutural demanda que estejamos prontos a acompanhar o passo de cada um dos quatro instrumentos, suas interações e conexões, o desenvolvimento dos temas, a muitas vezes delicada relação entre o festivo e melódico klezmer e o enérgico free jazz. O Masada foi feito para o palco de um teatro, há um cerimonial envolvido, a música é sagrada e exige respeitoso silêncio; na choperia do Sesc Pompeia, por exemplo, o equívoco seria o mesmo... Exemplo simples: enquanto Greg Cohen solava, momento único sozinho do baixo se desenvolvendo em ponto de silêncio máximo do concerto, um cara ao meu lado comentava com uma amiga sobre o carpete de fulano: isso mesmo: carpete, tapete, maciez, se ficava melhor com ou sem etc. Esse cidadão tinha de ser expulso do local e proibido de adentrar eventos similares; sua atitude é muito mais desrespeitosa e prejudicial à sociedade do que um cigarro aceso ou um outdoor na fachada de um prédio, que tanta histeria causam...
Mas a grande arte suplanta as adversidades.
John Zorn, Dave Douglas, Greg Cohen e Joey Baron exibiram sintonia intocável e brilharam em um concerto excepcional. Breve demais para quem realmente estava tenso para vê-los em ação, mas em nível elevadíssimo. Como o show de SP era o último após uma desgastante turnê que os levou a quatro países (Equador, Chile, Argentina e Brasil) em apenas cinco dias, além de os músicos estarem juntos nessa empreitada há quase duas décadas (de saco cheio, talvez?!), nada garantia que o concerto alcançasse o pico de exuberância que tocou. Zorn flamejou seu sax sem piedade, adicionando ferocidade crescente em meio aos vários temas festivos do repertório Masada; Cohen, a elegância do quarteto, com seu dedilhado swingante fez muita gente rebolar; Douglas, sóbrio e preciso, peça fundamental para o processo dialógico que arquiteta o grupo; e Baron, o mais ovacionado da noite após muscular exibição à bateria, que conseguiu abafar heroicamente os ruídos que teimavam em atropelar os músicos nos momentos mais sutis do songbook revisitado.
Não se trata aqui de free jazz, muito menos de improvisação livre ou noise; todo o repertório apresentado –apenas umas sete faixas– foi pincelado das dezenas e dezenas (algumas centenas, na verdade) de temas compostos por Zorn a partir do que chama de “escalas judaicas”. Cohen e Baron, apesar de certa liberdade, funcionam como propulsores rítmicos, demarcando o pulso do que seria essa “new jewish music” proposta pelo saxofonista. Curioso notar durante o concerto os músicos conversando entre cada tema, recorrendo a partituras colocadas à frente, selecionando o que viria a seguir. Condutor de todo o espetáculo, Zorn interage apenas com seus parceiros, chegando a 'orquestrar' o conjunto em algumas passagens –especialmente quando abusa de seu conhecido sistema de ‘stop/start’. Não há o porquê de ser simpático, agradar ao público, conversar, dizer “boa noite SP, eu amo vocês”. John Zorn está ali apenas para exibir sua música. Simples assim, sem afetação ou rebeldia de butique. Não gostou, azar.
Se concertos recentes de outros ícones, especialmente Pharoah Sanders e Ornette Coleman, acabaram por se revelar mornos e até engessados, Zorn mostrou que se mantém em ebulição máxima, obrigatório e urgente para todos que se interessam por música enérgica, livre e vital. Facilmente, o Masada protagonizou o maior concerto do ano. Um pouco mais, ainda: fizeram a mais explosiva apresentação desde o Fire!, de Mats Gustafsson. Será que levaremos mais duas décadas para ter Zorn em nossos palcos novamente?
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