Quando se fala em junção feroz do free jazz com o rock mais pesado, a associação primeira e direta que costuma ser feita é com John Zorn. Sim, Zorn é um dos pioneiros e fundamentos dessa seara, com os seus grupos Naked City (89) e PainKiller (91). Mas houve algo nesse território um pouco antes. E dentre seus mentores, estava lá Peter Brötzmann. Formado em 1986, o quarteto Last Exit trazia, além de Brötz, Bill Laswell (baixo elétrico), Ronald Shannon Jackson (bateria) e Sonny Sharrock (guitarra). A energia rocker aliada à liberdade furiosa do free jazz. Isso era o Last Exit.
As atividades do Last Exit se concentraram entre 86 e 89, sendo que a prematura morte de Sharrock (1940-1994) enterrou de vez as chances de o quarteto dar continuidade à sua história. O que o Last Exit produziu, documentado em sete álbuns, praticamente tudo ao vivo, mostra o quanto o seminal grupo abriu fronteiras para futuros encontros ariscos entre o free e o rock. O som da banda não era um desdobramento do chamado jazz rock, braço do que genericamente se rotulou como fusion e que teve relativa popularidade especialmente nos anos 1970. Não há espaços aqui para o virtuosismo de grupos como Mahavishnu Orchestra. A pegada pertencia a outro hemisfério, sendo o quarteto marcado com rótulos como free-rock-avant-jazz-noise.
("Last Exit". Live in Frankfurt, 1986)
Dos integrantes do Last Exit, apenas Laswell – que depois formaria o PainKiller com Zorn – tinha relacionamento direto com o rock, tendo à época produzido discos para Motorhead, Iggy Pop, Public Image Ltd. e Mick Jagger. Pelo que se sabe, a ideia original de reunir o Last Exit partiu exatamente de Laswell, produtor de múltiplas investidas requisitado por artistas tão diferentemente interessantes quanto –além dos já citados– Fela Kuti, Herbie Hancock, Laurie Anderson e Gil Scott-Heron. Em meio a seus parceiros furiosos, o baixista acabaria, na realidade, ocupando sonoramente o espaço mais discreto do Last Exit. Claro que era complicado competir com Sharrock, um dos pioneiros da guitarra elétrica free jazzística, dono de um processo muito próprio de investigação sonora que fez com que ele se tornasse um dos pontos nevrálgicos das cordas free. As trilhas de densidade ruidosa e picante que Sharrock conduzia passavam distante do brilhante virtuosismo técnico de um John McLaughlin, por exemplo. E era disso exatamente que o Last Exit necessitava. Nas baquetas, o também múltiplo Jackson, que fora parceiro de Ornette Coleman na banda free funk Prime Time, além de ter acompanhado o pianista Cecil Taylor em discos basilares como “Live in the Black Forest”. No Last Exit, Jackson destilava uma dilatada marcação percussiva poliritmica que dava o corpo robusto, em nada jazzy, ideal para a banda desenvolver suas improvisações de concentrada intensidade. Jackson também se arriscava em pontuais vocais, em que mostrava um cantarolar áspero, algo meio dirty blues.
O Brötzmann perfeito para o Last Exit era o sax-tenorista. Nos momentos em que empunhava esse instrumento, atingia a robustez avassaladora que o quarteto demandava. Não que suas investidas ao clarinete ou ao tarogato não se encaixassem na banda, mas era com o tenor que fazia o melhor acontecer. Muita gente, distante do mundo free jazzístico, deve ter descoberto Brötzmann naquela encarnação. Mesmo hoje, não é difícil encontrar gente que aprecia sons mais pesados e ignora completamente as possibilidades vulcânicas propiciadas por um sax – ou melhor, por um saxofonista como Brötz. Pode parecer estranho, mas a impressão de que o sax é um instrumento doce e açucarado ainda existe...
O Last Exit deixou sete registros, sendo apenas um de estúdio, “Iron Path” (88), que, curiosamente, se mostra mais climático, com um degrau de fúria abaixo de seus pares ao vivo. As imagens que há do Last Exit mostram que tudo era uma grande diversão para o quarteto, com um ar de descontração garageira, jam entre amigos sem compromisso com nada ou ninguém – apenas com o som que produziam. Por isso não havia como adicionar um novo guitarrista e fazer um tour ou um disco após a morte de Sharrock. O Last Exit apenas poderia existir se os quatro integrantes pudessem estar juntos. Essa cumplicidade deve ter colaborado para que raras vezes eles recebessem convidados entre eles. Uma dessas ocasiões foi documentada em outubro de 86, no Japão. O registro foi editado como “The Noise of Trouble” e conta com a participação do saxofonista japonês Akira Sakata e o (deslocado) pianista Herbie Hancock, que deve ter sido convidado por seu amigo Laswell. Outra convidada foi Diamanda Galás, também em 86, no Moers Festival. O encontro, talvez abaixo das expectativas, pode ser conhecido hoje graças a um bootleg.
O ano de 86, quando se juntaram, foi o mais intenso para o Last Exit. Excursionaram por Europa e Japão, protagonizando alguns dos que seriam seus álbuns oficiais. O homônimo “Last Exit”, “Köln” e “The Noise of Trouble” foram captados naquele ano primeiro. Vem de 86 também um conhecido show em Frankfurt (trasmitido pelo canal alemão N3, registro desses vídeos), o concerto em Moers com Diamanda e outro no Fasching Jazz Club, em Estocolmo, que sobreviveu auxiliado por uma transmissão radiofônica. Nesta gravação, os temas tocados são entrecortados por pequenas intromissões, trechos de entrevistas/comentários (faixas 1, 3 e 5), mas a essência do concerto se mantém preservada.
“LAST EXIT”
Live at Fasching Jazz Club, Stockholm, may 18, 1986. (Radio Broadcast)
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