Que fim levou o Gato?
Música e outras coisas

Que fim levou o Gato?


Leandro ‘Gato’ Barbieri ainda está vivo. Argentino, veio ao mundo em 1934, na cidade de Rosário. O envolvimento com a música surgiu cedo, coisa de família. Começou com o clarinete, passou ao sax alto e, somente lá pelos 20 anos, chegou ao sax tenor, que se tornaria seu instrumento referencial. Das canjas em bares portenhos, chegou à orquestra Lalo Schiffrin, emprego que rendeu a Gato, pela primeira vez, visibilidade. Antes de desembarcar na Europa, onde sua carreira ganharia corpo, viveu por oito meses no Brasil, até o início de 1963. Uma vez na Europa, primeiro trabalhou com músicos mais tradicionais, como Jim Hall e Ted Curson, antes de se envolver com a avant-garde, pelas mãos de Don Cherry, com quem gravou álbuns excepcionais como “Symphony for Improvisers” e “Complete Communion”. Em 1967 gravou seu primeiro disco como líder. Relançado há pouco, "In Search Of The Mistery" traz Gato acompanhado de músicos como o baixista Sirone. Desse período, há também “Obsession”, gravado com o baixista J.F. Jenny Clark e o baterista Aldo Romano. Esse álbum recebeu uma versão em vinil no Brasil, na década de 80, e às vezes aparece perdido nos sebos. Esses discos representam a face mais crua do free jazz de Barbieri que, ainda no final dos 60, daria a primeira guinada em sua carreira, rumo às raízes latinas.


Essa faceta de free-latin-jazz de Barbieri ganhou corpo em 1969, quando lançou o álbum "The Third World". O disco traz nomes essenciais do free (Charlie Haden, Beaver Harris e Roswell Rudd) e marca um período fértil no qual Gato consegue sintetizar suas influências: raízes + avant garde. Na mesma linha do que Pharoah Sanders fazia naquele período com ritmos e timbres de sua África ancestral, mesclados à liberdade e agressividade free jazzística, o 'Gato' buscou criar, a partir de sua América Latina. O esquema rendeu belos álbuns, como “El Pampero” e “Fenix”.
Em sintonia com o avant-cine-latino de então (época de Glauber Rocha, ‘Pino’ Solanas e Tomás Gutiérrez Alea), Gato levava canções, ritmos, timbres, 'sonidos latinos' emaranhados à liberdade jazzy para explorar um campo ainda pouco remexido. Sempre empunhando o espanhol _não apenas em nomes de discos (“El Pampero”) e músicas (“Cancion del Llamero”, “La Podrida”), mas também para se comunicar com o público nos shows mundo afora, como podemos ouvir em gravações diversas_, Gato se assentava como o grande nome do jazz livre nascido dessas bandas. Mas algo (inevitável? com certeza não...) aconteceu.

Era o ano de 1976 e o início do fim se chamava “Caliente!”. Um disco latin-bailante, longe de qualquer engajamento com sonoridades e discursos vívidos, um Gato novo que, aos 41 anos, tomava preocupante incerto rumo. Para quem achou que era apenas um deslize de carreira, como ocorre com muitos artistas sérios (basta ver o que um compositor refinado como Wayne Shorter fez nos 80s, com os bizarros “Atlantis” e “Phantom Navigator”), o pior estava por vir. A cada álbum, Gato Barbieri foi se afundando em um som cada vez mais ‘suave’, ‘fácil’, exótico e destinado ao consumo ligeiro e despreocupado à beira mar... Que fim levou o Gato, aquele músico inventivo e inquieto? Nunca saberemos ao certo o que o desviou de sua trajetória de rica criação: sonho premonitório? a mulher o abandonou? desejo de ganhar vários Grammys? queria dar autógrafos na padaria? comer de graça em restaurantes da moda? Vai saber... Impossível é considerar que agiu de má-fé no passado, que seus discos feitos antes dos 40 anos de idade não representavam o que esperava, acreditava e apostava quando o assunto era sua criação artística.

O crítico francês André Francis mostra, em seu livro “Jazz” (Ed. Martins Fontes, 2000, 332 pgs.), publicado pela primeira vez em 1982, o quanto admirava Gato Barbieri: “É um dos músicos mais comunicativos, mais generosos, a ponto de provocar um delírio quase orgiástico. O verdadeiro continuador de Coltrane parece bem ser Barbieri”. Porém, no fim de seu texto, mostra preocupação com o que o Gato vinha produzindo (estamos falando de 82!): “[Mas] Seus últimos discos, bastante comerciais, nos decepcionam”.

Em uma década de produção intensa e valiosa (65-75) Gato Barbieri registrou seu trabalho em cerca de 20 discos, que exibem grandes momentos do saxofonista. De sua fase positiva, destaquei esse Live at Berliner Jazztage, de 72, um bootleg que foi lançado tempos depois em versão ‘vinil pirata’. A apresentação conta com nomes do quilate de Han Bennick (parceiro de toda hora de Brotzmann) e Lonnie Liston Smith (pianista que acompanhou Pharoah Sanders e gravou o seminal “Karma”).


A primeira faixa, “Sudamerica”, traz primeiro Barbieri ao microfone, onde fala, para uma platéia na Alemanha, apenas em espanhol. Gato começa sua fala com “Sudamerica: tercero mundo” e enfileira os países da região. Depois de serena divagação, entra com seu sax aos 12:50 em torrentes agudas, de notas alongadas, que caracterizam seu soprar. A música se desenvolve por 25 minutos, em que a bateria de Bennick ganha pulso esquentando o diálogo com Gato. O sax do argentino será ainda mais prestigiado em “Encuentros”, na qual solará longamente durante seus 19 minutos. Para quem não conhece o verdadeiro Gato, eis uma digna apresentação...

Berliner Jazztage, november, 5, 1972

*Gato Barbieri: sax tenor, flauta, voc
*Lonnie Liston Smith: keyboards
*J.F. Jenny Clarke: bass
*Han Bennick: drums
*Mandrake: percussions

1. Annoucements
2. Sudamérica 25:04
3. Mi Buenos Aires querido 7:33
4. Encuentros 19:10
5. El Pampero 9:15



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