Omaggio a Ornette Coleman (March 9, 1930 – June 11, 2015)
Uma das últimas vozes da primeira geração do free jazz se calou.
Ornette Coleman morreu de parada cardíaca, aos 85 anos de idade: a música livre amanheceu um pouco menos radiante. Ao lado de Cecil Taylor, Ornette foi pioneiro, ainda nos anos 1950, no processo de desmembrar a estrutura jazzística, apontando novos rumos, possibilidades e perspectivas sonoras...
É sintomático que exatamente um disco realizado por Ornette Coleman tenha primeiramente recebido o nome de Free Jazz, dando os sedimentos de uma nova forma dentro do inesgotável universo do jazz. Nada foi rápido ou gratuito em sua trajetória de mais de seis décadas de criação artística. O saxofonista, nascido em 9 de março de 1930, já estava com 28 anos de idade quando teve a oportunidade de gravar seu primeiro disco, apenas aí despontando na cena jazzística. Coleman havia começado a se envolver com música ainda na escola, na década de 40, em sua Fort Worth (Texas) natal. Nesse tempo, conviveu com figuras que se tornariam também conhecidas nas décadas seguintes: Dewey Redman, Prince Lasha e Charles Moffett. A peregrinação de Ornette até 1958, quando entra em estúdio para gestar sua estreia, Something Else!!!!, é similar à de Charlie Parker na década anterior: passou por diversas bandas de estilos distintos (inclusive de R&B), por muitos lugares e cenas, tocando escondido sem que ninguém o percebesse ou sendo menosprezado quando exibia sua sonoridade peculiar.
Importante nesse percurso foi a mudança para Los Angeles, em meados da década de 1950. Seria aí que encontraria seu parceiro fundamental na abertura de novos horizontes, Don Cherry, com quem manteve um trabalho constante e vital até 1961. Os dois se juntariam a Charlie Haden e Billy Higgins para formar um quarteto ultramoderno, que logo colocaria na rua The Shape of Jazz To Come (1959), sinalizando uma nova era que se abria. Ouvir as primeiras gravações de Ornette revelam o porquê do burburinho em torno de seu grupo, principalmente se nos atentarmos ao fato de que o hard bop ainda era o som dominante, e Sonny Rollins, o imperador do saxofone. Com Change of the Century (1960), que trazia uma faixa intitulada "Free", a nova sonoridade estava já bem delineada.
Como todo criador de obra artística que causa impacto e estranhamento, Coleman passou a ser tratado como gênio por uns (anunciador de uma nova era e de um cosmos ainda a ser desvendado) e impostor por outros (por trás de sua música, haveria apenas uma verdade: não sabia tocar).
O ponto final de sua jornada primeira viria em 21 de dezembro de 1960. É quando Coleman colocou no estúdio dois quartetos e gravou uma peça focada na improvisação coletiva que durou (espantosos para a época) 37 minutos. Essa experiência única e radical seria editada alguns meses depois sob o nome Free Jazz: a Collective Improvisation, que se tornaria um dos marcos da música em todos os tempos.
O gênio de Ornette não se contentaria com essa sua revolucionária primeira fase. Em meados dos anos 60, após um retiro de mais de dois anos para estudos (entre 62 e 65), o músico ressurge tocando novos instrumentos: adiciona o violino e o trompete a seu fiel sax alto. Passando a se dedicar mais à composição, explorou a escrita para cordas e orquestra (nesse sentido, seu mais ambicioso projeto foi Skies of America, de 72) e desenvolveu uma nova teoria musical que chamou de Harmolodics. Como diz o biógrafo Peter Niklas Wilson ("Ornette Coleman: His Life and Music, 1999), "não é fácil compreender o que Coleman entendia de fato por harmolodics". O neologismo criado por ele englobava três conceitos, "harmony", "movement" e "melodic", que, trabalhados juntos, propiciavam uma nova forma de se fazer música.
No decorrer da década de 1970, a constante investigação de Coleman por rumos frescos o levaria a uma nova etapa. Aproximando-se pela primeira vez das guitarras, Coleman desembocou em um campo que trazia elementos de outras sonoridades (funk, rock) em destaque naquela época. Desse novo caldeirão, adicionando seu particular sopro, emergiria o que logo foi rotulado de free funk. Marco nesse processo é o ano de 1976: é quando convoca logo dois guitarristas (Bern Nix e Charlie Ellerbee) e o baixista Jamaaladeen Tacuma para explorar aquele manancial. O grupo formado para esses novos tempos foi chamado de Prime Time. A aventura eletrificada de Coleman renderia de cara dois brilhantes discos, Body Meta e Dancing In Your Head. O Prime Time seria o projeto mais longevo de Ornette, sobrevivendo até meados da década de 90 e deixando pelo caminho quentes títulos como Of Human Feelings (79) e In All Languages (87).
Nos anos 1990, Coleman diminuiu o ritmo, gravando pouco e excursionando com menos assiduidade. O último trabalho que lançou como líder foi Sound Grammar (2006), sendo o primeiro registro em mais de uma década. Depois disso, apareceu em “For the Love of Ornette” (2010), gravação comandada por Jamaaladeen Tacuma, e “New Vocabulary” (2014), tocando com o grupo conduzido pelo duo de Jordan McLean e Amir Ziv.
Sound Grammar seria, de fato, o registro de despedida de Ornette, no qual pôde apresentar pela última vez sua arte de forma plena: ao lado de seu filho Denardo (bateria) e de dois baixistas, gestou um inspiradíssimo exemplar, com novos temas, que lhe rendeu nada menos que o prêmio Pulitzer de música. Foi com uma formação similar à de 'Sound Grammar' que Ornette Coleman nos brindou com uma apresentação em novembro de 2010. Um momento de encanto, em que Ornette subiu ao palco do Sesc Pinheiros (SP) para mostrar sua arte, no auge de seus então 80 anos, sem arroubos, uma noite em que, mais do que tudo, suas composições e sua história foram celebradas.
Com a morte de Ornette Coleman, um capítulo da música mais inventiva vai se encerrando. Resta a nós mantermos sua arte pulsando, redescobrindo a cada dia a beleza de sua criação, revisitando com escuta atenta a inventividade vibrante desse mestre da música livre.
(Ornette Coleman, David Izenzon and Charles Moffett, 1966)
Apesar de não ter se tornado uma figura propriamente underground, sendo reconhecido mesmo pelos que não estão entre os mais entusiastas da free music, há títulos lançados por Ornette Coleman que permanecem, há muito, fora de catálogo. Talvez sua morte estimule reedições e lançamentos de material inédito ou esquecido, mas, por ora, não é possível encontrar tudo que gravou disponível.
Uma dessas gravações difíceis de serem encontradas é Ornette at 12, editado pelo selo Impulse! em 1968. O “12” do título se refere à idade de seu filho Denardo à época da gravação. Essa não era a primeira vez que o garoto Coleman gravava com o pai: em 1966, quando tinha apenas 10 anos de idade, o baterista Denardo fez sua estreia ao lado de Ornette, no álbum “The Empty Foxhole”. Denardo acompanharia o pai nos palcos e estúdios por essas décadas todas. Colocar o garoto para gravar tão cedo, ao lado de músicos fantásticos como Charlie Haden e Dewey Redman, foi um ato de extrema provocação por parte de Ornette. O resultado é vigoroso, com grandes disputas entre Ornette e Dewey –parceria fundamental do free, que gerou álbuns do calibre de “Love Call”. Se este Ornette at 12 não chega a ser um “Top 10” dentro da discografia produzida por Coleman, merece, sem dúvida, ser redescoberto e apreciado.
“Ornette at 12”
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*o autor:
Fabricio Vieira é jornalista e fez mestrado em Literatura, tendo se especializado na obra do escritor António Lobo Antunes. Escreveu sobre jazz para a Folha de S.Paulo por alguns anos; também foi correspondente do jornal em Buenos Aires. Atualmente escreve sobre literatura e música para o Valor Econômico
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