Em 2007, ela foi homenageada pelo Festival Internacional de Música de Campos do Jordão; em 2008, foi a vez de o Instituto Cultural Oi Futuro, do Rio, organizar uma retrospectiva em torno de seu trabalho. Esses resgates-homenagens recentes podem dar a enganosa impressão de que Jocy de Oliveira é uma criadora devidamente absorvida e contemplada. Mas a realidade não é tão bela: a compositora e pianista Jocy de Oliveira (1936, Curitiba) permanece, em muitos sentidos, como uma figura ilustre/desconhecida, nos mesmos moldes que seus pares Gilberto Mendes e Jorge Antunes. As cinco décadas de atividade artístico-musical que envolvem seu nome deixaram como testemunho uns vinte álbuns, como pianista (sua gravação de ‘Catalogue D´Oiseaux’, de Olivier Messiaen, foi a primeira no Hemisfério Sul) e autora (de óperas, peças para orquestra, câmara, solistas e meios eletrônicos). Mas muito desse material está fora de catálogo... Pergunta-se: o quanto de público interessado em música contemporânea se delicia com suas criações sonoro-visuais? Seria mais um caso de artista mais prestigiado no exterior que em seu país?
Ainda apenas uma jovem talentosa pianista, Jocy se casou com o aclamado maestro Eleazar de Carvalho (1912-1996). Aos 23 anos, entrou em estúdio pela primeira vez para gravar composições próprias. Esse curioso registro primeiro (“A música século XX de Jocy”), datado de 1959, revela o diálogo que a autora tentava estabelecer naquele momento com a música popular. Já antenada com o mundo da vanguarda européia, Jocy criou pequenas canções, com satíricos traços rítmicos sambísticos e bossa-novísticos, de curiosos títulos como “Sofia Suicidou-se”, “Pecou a Rosa” e “Samba gregoriano”, antecipando os encontros do avant-garde com o universo popular que seriam celebrados mais à frente pelas mãos de gente como Tom Zé e Arrigo Barnabé. Mas logo a compositora seguiria outros rumos. Intensificando seu contato e interesse pelo erudito contemporâneo, organizou em 1961 a ‘Primeira Semana de Música de Vanguarda’, no Theatro Municipal do Rio, em um período em que dava início a experiências com música eletroacústica e multimídia, que a acompanham até hoje.
A partir dos anos 1960, Jocy peregrinou por EUA e Europa, com ou sem seu marido maestro, fazendo concertos como pianista e estreitando contatos com compositores cultuados –Luciano Berio, Iannis Xenakis, John Cage– do campo sonoro que decidira abraçar. Com Stravinsky, iria usufruir de um contato mais próximo, tendo ciceroneado o mítico músico em sua passagem pelo Rio em 63; a pianista também chegaria a atuar como solista sob a regência de Stravinsky naquela década. A memória de seus encontros com o compositor russo foi celebrada em 2010 com a ópera “Revisitando Stravinsky”*.
A década de 1980 marca uma alteração de foco relevante em sua trajetória: é nesse período que abandona a vida de pianista e as salas de concerto para se dedicar apenas à sua vertente de compositora. A partir desse ponto, suas celebradas óperas se avolumam, tendo dentre suas crias as vitais “Fata Morgana” (87), “Inori à prostituta sagrada” (93) e “As Malibrans” (99/00). Premiada por instiuições como Guggenheim Foundation, Rockefeller Foundation e New York Council on the Arts, Jocy tem em suas atualíssimas óperas –que lidam com vídeo, instalações, poesia e teatro– o ícone máximo de sua trajetória (em anos recentes, algumas delas foram reunidas/editadas em DVD, o que permite a descoberta/reencontro com essas obras).
(trecho de 'Revisitando Stravinsky', 2010)
Um revelador documento de seus trabalhos não-operísticos é o álbum Estórias para voz, instrumentos acústicos e eletrônicos, que apareceu em LP em 81, reunindo quatro peças produzidas entre 67 e 78. “A série de estórias é um trabalho em progresso, uma colagem de reminiscências, sonhos e memórias, um caleidoscópio em som, palavra, ação e imagem”, explica a autora no encarte do álbum. Especialmente em ‘Estória II’ e ‘Estória IV’, pode-se apreciar as incursões de Jocy pelo campo eletroacústico, com modelagens sonoras gestadas a partir de vozes pré-gravadas (ou não) e remontadas, associadas a sons eletrônicos e acústicos (percussão, violino, baixo). ‘Era uma vez’ é o marco de partida dessas peças que, ao invés de contarem as ‘estórias’ que prometem, acabam por arrastar os ouvintes por trilhas sinuosas e opacas. Sem transparência narrativa, essas estórias mais escondem e desconcertam do que revelam; em ‘Estória IV’, as impressões da autora se misturam em choques/desencontros de palavras em português, sânscrito e japonês. “O texto é composto de uma polaridade de significados, de correspodências semânticas e rítmicas, palavras encadeadas em difusas relações entre visões e memórias, reflexões intelegíveis sobre vida e morte”, diz Jocy. As outras duas peças são focadas no piano, sem o característico jogo com voz/palavra que encanta a autora. Esse conjunto, mesmo que esconda a face visual/multimídia marcante e fundamental de sua obra, representa uma entrada impactante no universo da autora.
1. Estória II (67; voz, percussão, tape)
2. Wave Song (77; piano, live electronics)
3. Dimensões para quatro teclados (76; piano, celesta, harmônio, cravo)
4. Estória IV (78; duas vozes, violino, baixo, percussão, live electronics)
*Ps: em crítica sobre a estreia de Revisitando Stravinsky, escrita em setembro de 2010 por João Marcos Coelho, para O Estado de S. Paulo, um leitor deixou (na versão online) um comentário que exemplifica bem o quanto trabalhos artísticos fora do eixo do “bom gosto médio e acomodado” ainda causam de espanto e indignação em boa parte do ‘público culto’. A fala do leitor/espectador (reproduzida abaixo) parece ter sido estraída da boca/mente de uma pessoa que vivenciou os primeiros suspiros da vanguarda erudita, um século atrás:
“Fui ontem com a minha esposa assistir ao concerto no Municipal. Buscava alguns momentos de boa música após uma semana de trabalho intenso. O que encontrei foi uma completa cacofonia, gritos sem nexo, uma história sem nenhum senso de lógica, um enredo sem pé nem cabeça baseado nas lembranças da autora e de seu encontro com o compositor. Não era o que eu esperava de um espetáculo patrocinado por grandes empresas. No meio do espetáculo várias pessoas se cansaram e começaram a ir embora. Casais trouxeram crianças esperando mostrar um pouco de cultura e rogo a Deus que não tenham traumatizado os jovens, que certamente vão preferir ouvir um pagode à música clássica. Saímos também no meio da encenação (...)”
E ele apenas estava presenciando o mais recente trabalho de uma elegante senhora de 75 anos e cinco décadas dedicadas à música... Para esse ouvinte desinformado, deixo palavras do pesquisador Vasco Mariz, autor de História da Música no Brasil: “É preciso estar preparado para aproximar-se da obra de Jocy de Oliveira, cuja originalidade não se pode colocar em dúvida. A compositora merece toda nossa atenção e justifica o esforço de tentar compreendê-la.”
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