Talvez, no fim deste mês, muitos concluam que o grande show do festival Jazz na Fábrica (de 7 a 29 de maio) tenha sido o do saxofonista Archie Shepp, em muito pela forte impressão que costumam causar as apresentações de mitos musicais. Mas, mesmo com o evento ainda não tendo atingido nem seu meio, já arrisco dizer que quem perdeu o concerto do Fire! na noite de ontem, no Sesc Pompeia, deixou de presenciar, sem dúvida, um dos momentos mais fortes e intensos desse festival (o melhor show até? é provável).
O Hurtmold abriu os trabalhos. Confesso que até o começo da noitada, com ingressos esgotados (porquê duas noites para o entediante 'The Bad Plus' e uma para o Fire??), ainda tinha dúvidas quanto a seu formato: pensei que se trataria de uma grande jam mal costurada, com o sexteto paulistano e o Fire! ao mesmo tempo no palco (e duvidei da eficácia da fórmula). Para minha (agradável) surpresa, a curadoria fez o esquema 'abertura' + 'principal', uma banda de cada vez, cada uma com suas particularidades –esquema muito positivo, que traz um público novo/diferente para os shows e dá espaço para bandas locais mostrarem o que têm feito.
A instrumentação do Fire! foi mais enxuta que a vista em seu álbum de estréia (que contou com adição de sax tenor, double bass, órgão, guitarra, piano e até vocalizações em um dos temas). Mats Gustafsson veio ao palco ontem munido apenas de sax barítono e fender rhodes. Johan Berthling se concentrou no baixo elétrico. O baterista Andreas Werliin completou o trio. Para quem já conhecia o Fire!, não foi surpresa o show se desenvolver com poucas faixas e pausas, em um fluxo constante de sons, com longos devaneios hipnóticos, quase lisérgicos, especialmente quando Mats se focava em divagações ruidosas no fender rhodes. O baixo acabou por se revelar uma peça fundamental nesse processo: Berthling não é solista, tampouco um virtuose jazzístico: seu som é edificado a partir de camadas circulares e estilingadas, que fazem com que a música do trio deslize sob uma atmosfera envolvente, inebriante. Andreas, sem ser muscular, utiliza intensamente os registros metálicos de sua bateria, imprimindo pontos de força e ritmos de marcação repetitiva, que fizeram muita gente chacoalhar distraidamente a cabeça e os pés. Ao sax (apenas barítono: Gustafsson tem nos últimos tempos, mesmo no contexto do The Thing, se focado muito na exploração desse sopro), Mats mostrou a potência de seu toque, com picos de alto fôlego e sonoridade desesperada/desesperante (não é apenas o tenor que bem reverbera a voz humana), sem lidar com solos dilatados e complexos ou testar detalhes mínimos de exploração timbrística e embocaduras variadas, como faz em outros projetos. Afora passagens de maior devaneio, quando Mats trocava o sopro por ruídos elétrico-fantasmagóricos, o Fire! exalou uma energia extrema, voltagem intensa que atingiu ouvidos e corpos (curioso ver pessoas cá e lá dançando ao som do grupo; provavelmente um público novo, que estava sendo apresentado naquele momento a um universo sonoro diferente e que, talvez, acabe por se interessar de fato pelo ouvido e sentido ali).
(Fire! at Saalfelden Jazz Festival, 2010)
Um dos pontos que deve estar ecoando até agora nos ouvidos de muitos dos presentes é “You Liked Me Five Minutes Ago”, faixa que encerra o primeiro disco homônimo do trio e que foi um dos destaques da noite. O tema traz Gustafsson explorando infinitamente um pequeno riff, repetido dezenas de vezes nas esferas mais encorpadas de seu sax em um ciclo interminável, angustiante e mântrico –a versão ao vivo foi bem mais intensa e extensa que a registrada no álbum.
Findo o show, era possível conversar com Johan e Andreas, que bebiam uma lata de cerveja e fumavam, do lado de fora da choperia do Sesc, sem frescuras, misturados às pessoas que saíam da apresentação. Gustafsson se concentrou em desligar/desconectar seu equipamento, mas bastava encostar na beira do palco para conversar com ele, nada de formalismos, estrelismos ou necessidade de acesso vip ao backstage.
Antes de retornar à Europa, o Fire! desembarca em Porto Alegre, onde se apresentará amanhã no Centro Cultural Santander. Imperdível para quem estiver nas redondezas.
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