Música e outras coisas
Amiri Baraka: meio século de discurso (e som) combativo
Nascido em 1934 em New Jersey, LeRoy Jones nem sempre foi o vulcão discursivo que o tornaria conhecido. Na década de 50, o jovem poeta circulava pelo meio beatnick, vivendo no Village e dividindo noitadas com Jack Kerouac e cia. Uma virada na vida de Jones veio quando esteve em Cuba no começo dos anos 1960, onde acabou seduzido pela força do movimento revolucionário de Fidel Castro. Se os EUA não eram terreno para uma revolução como a de Fidel, era fato que os negros deviam buscar realizar sua revolução, remodelando e transformando o espaço social que os marginalizava. De volta aos EUA, Jones passou por um rápido processo de radicalização discursiva. Já em 63, o escritor editou o polêmico “Blues People: Negro Music in White America”, no qual analisava a originalidade, as particularidades e a relevância da música para a cultura afro-americana e sua potencialidade em uma América dominantemente branca. Ele defendia que o blues e o bebop eram os estilos que melhor representavam a criação artística negra, além de anunciar que o free jazz trazia uma verdadeira renovação na forma de os afro-americanos fazerem sua música. Cada vez mais envolvido com o cenário musical e tocado pelo impacto do free jazz nascente, logo elevaria o estilo ao patamar de principal música do período, além de se tornar um de seus divulgadores mais ativos. Outro marco na biografia de Jones nesse momento é sua adesão ao Islã e a simbólica troca de nome para Imamu Amiri Baraka.
Em meio ao recrudescimento do clima de combate dos negros pelo seu espaço após a morte de Malcolm X (1925-1965), o agora Amiri Baraka subiu o tom e passou a criticar cada vez mais acidamente os EUA e os privilégios dos brancos. Ainda em 65, o escritor participa da fundação do importante BARTS (Black Arts Repertory Theatre/School), sediado no Harlem, para onde ele havia se mudado por entender ser uma região mais legítima para a causa negra. O local era um centro cultural dedicado à formação e à divulgação da arte afro-americana. Aberto em maio daquele ano, quase simultaneamente à AACM, o BARTS passou a promover peças de teatro, artes plásticas, história cultural e muitos concertos –tocaram lá Coltrane, Cecil Taylor, Sun Ra, Albert Ayler, Milford Graves e outros tantos. No entanto, asfixiado por problemas financeiros, o projeto BARTS não durou muito tempo; mas gerou uma ideia que logo se multiplicaria EUA afora. Nos anos seguintes, brotaram pelo país diversos centros como aquele, além de as aulas sobre arte e cultura negras ganharem cada vez mais espaço nas universidades –é indiscutível a relevância do projeto BARTS para a enfatização da consciência negra e da revolução cultural contra o racismo e a opressão.
As incursões de Baraka pela música serviram para que ele levasse sua poesia para dialogar com os instrumentos dos músicos amigos que tanto amava e defendia. Em 68, Baraka entrou em estúdio com Sun Ra e sua Arkestra. Do encontro, saiu o álbum “A Black Mass”, fruto da junção da música de Ra com as letras de Baraka. Um capítulo ainda mais interessante seria lançado mais à frente, em 82: “New Music New Poetry”, que reuniu Baraka, o saxofonista David Murray e o baterista Steve McCall. O poeta também subiu ao palco com uma variedade grande de músicos; essas aparições incluem Cecil Taylor, Max Roach, o trio AIR e seu grande amigo Archie Shepp. Se Baraka jamais conseguiu fazer do free jazz a música favorita dos afro-americanos –nem ao menos conseguiu torná-la popular entre o público que visava –, ao menos colaborou, com sua aura de polêmico e incendiário, para chamar a atenção a essa coisa nova que seus próximos criavam.
A arte de Baraka sempre brotou e viveu da/na palavra. Mesmo que andasse e gravasse com free jazzistas, nunca se aventurou nem como cantor. Sua mensagem poética era transmitida por meio de ‘spoken word’, da qual é um dos pioneiros, e foi assim que apareceu nos álbuns que participou. No começo dos anos 1970, amparado em textos de seu livro de poesia “It’s Nation Time”, produziu a gravação de um disco muito denso e musicalmente contagiante. Contando com a participação de percussão, vozes e de jazzistas – destaque-se: Gary Bartz (saxes), Reggie Workman (baixo) e Lonnie Smith (piano) –, Baraka não apenas deu seu recado, mas criou uma peça ritualística realmente intensa, resgatando elementos de blues, soul, spirituals, jazz, em uma viagem sonora de grande e sedutor apelo rítmico. O disco deve ser ouvido de forma ininterrupta, como uma longa viagem pela cultura negra. It’s Nation Time é um trabalho de grande vigor e reflete um período de combate e orgulho racial nascido em meio a um momento de grande disputa e preconceito –que se refletiu dos dois lados; não esqueçamos que Baraka defendia posições polêmicas, como a de que um branco só poderia fazer jazz se aceitasse ser uma simples cópia de um negro...
O poeta/ativista mantém hoje sua arte em coerente sintonia com aqueles tempos combativos, ainda ácido, crítico e, muitas vezes, polêmico e indigesto. Basta ver a repercussão controversa que teve seu poema "Somebody Blew Up America", escrito após os atentados de 11 de setembro...
*Lyrics by [English]: Imanu Amiri Baraka*Lyrics by [Swahili translation]: Je Jordan
Release date: 1972.
Credits: here/aqui.
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