Um pouco de jazz, por Lobo Antunes
Música e outras coisas

Um pouco de jazz, por Lobo Antunes



António Lobo Antunes é o maior escritor vivo de língua portuguesa. Nasceu em Lisboa no ano de 1942. Estreou na literatura em 1979, com o livro “Memória de Elefante”. Seu último romance, “Sobolos Rios que Vão”, foi editado em outubro de 2010. Em três décadas de atividade literária, o escritor português publicou 22 romances –dos quais somente 13 podem ser encontrados em nossas livrarias em edição nacional. Apesar de não ser ignorada, a obra de Lobo Antunes ainda não recebe a atenção que mereceria no Brasil, nem de público, nem da crítica, nem do meio acadêmico. Em 2009, ele veio pela primeira vez ao país como convidado de um grande evento literário (Flip), fato que deve colaborar para a difusão de sua fundamental obra.

O escritor sempre se revelou um entusiasta do jazz. Apesar de nunca ter escrito um livro focado no jazz ou em um jazzista como o fez, por exemplo, Julio Cortázar ("El Perseguidor"), em diferentes passagens de seus romances surgem citações e referências a esse universo, que permeia pensamentos de personagens e a voz de narradores. Em crônicas e entrevistas, Lobo Antunes já destacou inúmeras vezes a importância dos músicos de jazz para a concepção e o desenvolvimento de sua escritura.

Em uma crônica datada de 1999 (De Deus como apreciador de jazz), publicada na revista portuguesa Visão, o escritor aborda o jazz, Lester Young e Charlie Parker, e explicita seu envolvimento com a música. A crônica foi republicada no volume “Segundo Livro de Crónicas” (Ed. Dom Quixote, 2002), inédito no Brasil.
Um pouco de Lobo Antunes, para começar o ano:

 

                                        "De Deus como apreciador de jazz"


Cresci com um enorme retrato de Charlie Parker no quarto. Julgo que para um miúdo que resumia toda a sua ambição em tornar-se escritor Charlie Parker era de facto a companhia ideal. Esse pobre, sublime, miserável, genial drogado que passou a vida a matar-se e morreu de juventude como outros de velhice continua a encarnar para mim aquela frase da Arte Poética de Horácio que resume o que deve ser qualquer livro ou pintura ou sinfonia ou o que seja: uma bela desordem precedida do furor poético
diz ele
é o fundamento da ode. Sempre que me falam de palavras e influências rio-me um pouco por dentro: quem ajudou de fato a amadurecer o meu trabalho foram os músicos. A minha estrada de Damasco ocorreu há cerca de dez anos, diante de um aparelho de televisão onde um ornitólogo inglês explicava o canto dos pássaros. Tornava-o não sei quantas vezes mais lento, decompunha-o e provava, comparando com obras de Haendel e Mozart, a sua estrutura sinfónica. No fim do programa eu tinha compreendido o que devia fazer: utilizar as personagens como os diversos instrumentos de uma orquestra e transformar o romance numa partitura. Beethoven, Brahms e Mahler serviram-me de modelo para A Ordem Natural das Coisas, A Morte de Carlos Gardel e O Manual dos Inquisidores, até me achar capaz de compor por conta própria juntando o que aprendi com os saxofonistas de jazz, principalmente Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster, o Ben Webster da fase final, de Atmosfera para Amantes e Ladrões, onde se entende mais sobre metáforas directas e retenção de informação do que em qualquer breviário de técnica literária. Lester Young, esse, ensinou-me a frasear. Era um homem que começou por tocar bateria. Um crítico perguntou-lhe qual o motivo que o levara a mudar da bateria para um instrumento de sopro e ele explicou:

–Sabe, a bateria é uma coisa horrivelmente complicada. No fim dos concertos, quando acabava de desarmá-la, já todos os colegas se tinham ido embora com as raparigas mais bonitas.

O facto de desejar ter também raparigas bonitas levou-o, entre outras obras-primas, a These Foolish Things onde cada nota parece o último suspiro de um anjo iluminado. A fotografia que dele tenho mostra um homem sentado na borda da cama de um quarto de hotel com um sax tenor ao lado. Magro e envelhecido fita-nos através dos anos com os olhos mais doces e tristes que já vi. Usa uma gravata torta e um casaco amassado, e poucas pessoas estiveram decerto tão perto de Deus quanto esse vagabundo celeste.
Ben Webster, por seu turno, assemelhava-se a um lojista gordo que uma auréola invisível mas óbvia transfigurava. Estas três criaturas sentavam-se à direita do Pai e espanta-me não as encontrar nos altares das igrejas. Talvez que não exista lugar, em céus de mármore e gesso, para alcoólicos promíscuos e pecadores sem remédio. Talvez haja pessoas que se sintam melhor na companhia de criaturas edificantes que não edificaram nada a não ser vidas sem alegria rematadas por agonias virtuosas em odores de açucena. Como penso que Deus não é parvo estou certo que lhe daria comichão tanta bondade melancólica e tanta estreiteza sem mérito. Aposto mesmo que toca bateria a fim de deixar para os outros as raparigas mais bonitas, e ficar a arrumar discretamente tudo aquilo, tambores e pratos, enquanto Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster levam em paz o gin, a marijuana e as miúdas jeitosas para um estúdio de gravação onde Billie Holliday principiou agora mesmo a cantar o Seu poder e a Sua glória até ao fim dos tempos.



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