Sax e liberdade: rotas sonoras de Ivo Perelman
Música e outras coisas

Sax e liberdade: rotas sonoras de Ivo Perelman


Infeliz fato: o nome Ivo Perelman ainda não ecoa como deveria por aqui, mesmo dentre os que afirmam apreciar música instrumental e jazz. Mas, após duas décadas de carreira e 35 álbuns editados, Ivo não deve se preocupar muito com isso: na cena free jazzística internacional, seu nome está cravado. Inacreditavelmente, o saxofonista apenas foi tocar no Brasil pela primeira vez em 2006 e como convidado (!!!!) do violoncelista holandês Ernst Reijseger. Depois, ao menos, retornou uma vez por ano: em março de 2007, tocou em trio (Dominic Duval no baixo e Dimos Goudaroulis no cello), no Centro da Cultura Judaica; em junho de 2008, trio com Duval e a violinista Rosi Hertlein, no Masp e no Sesc; em outubro de 2009, na Casa de Francisca e no CCSP. Agora o veremos com seu excepcional quarteto no Sesc (hoje, amanhã e sábado).

Antes mesmo de ser ignorado por aqui, Ivo optou por tentar a cena musical dos EUA, na década de 80. Por lá, também encontrou obstáculos até que, em 1989, prestes a botar o sax na mala e retornar para SP, após peregrinar por palcos acanhados de hotéis e bares e ver seu visto perto de vencer, conseguiu entrar em estúdio, gravar algo e ver no que dava. Acompanhado por músicos brasileiros como a pianista Eliane Elias e o casal Airto Moreira e Flora Purim, gravou o que se tornaria seu disco de estreia, Ivo, que acabaria por chamar a atenção da crítica norte-americana, com direito a elogios do pessoal da Down Beat. A gravação permitiu a prorrogação do visto, novos contatos e a abertura do mundo jazzísitico. A fase inicial que encantou os norte-americanos, permeada de elementos sonoros brasileiros, não durou muito. Essa etapa de busca de uma síntese entre as linguagens musicais brasileira e jazzística não alcançou a envergadura almejada, como testemunha o próprio músico, e se estendeu por outros poucos trabalhos de sua extensa discografia, como “Children of Ibeji” (1992), que contou com Flora nos vocais e algumas figuras de proa do jazz livre, como o baixista Fred Hopkins e o pianista Paul Bley. Com esse perfil ‘verde e amarelo’ ainda sairia “Man of the Forest” (94, participação de Naná Vasconcelos), “Soccer Land” (94) e “Tapega Songs” (95).



O ano de 1996 reservaria uma virada fundamental no rumo musical de Perelman. O encontro com Matthew Shipp acabou por demarcar o primeiro passo nessa nova etapa estética. Era janeiro de 96. Saxofonista e pianista entraram em estúdio e gestaram o disco Bendito of Santa Cruz. Pela primeira vez, Ivo tocava sem apoio percussivo. E deixava para trás as sonoridades brasileiras que o acompanharam até o momento. Alguns temas populares (‘Cana Fita’, 'Zé do Vale’) aparecem no disco. Mas não passam de pretexto melódico para a liberdade improvisativa. Além da mudança sonora, 1996 é um marco por ter sido o ano em que Perelman mais gravou: foram 9 álbuns entre janeiro e outubro. Dentre esses, alguns de seus melhores discos, como Sad Life (trio com Rashied Ali e William Parker) e Sound Hiearchy (quarteto com Parker, Marilyn Crispell e Gerry Hemingway). Foi ainda nesse ano que o saxofonista gravou seu primeiro e único disco solo. Chamado de Blue Monk Variations, nem deveria existir.

No dia 2 de fevereiro de 1996, Perelman esperava um músico para gravar, no estúdio Systems Two (Brooklyn, NY). Enquanto seu parceiro não chegava, o saxofonista ficou aquecendo seu sopro, dedilhando variações em torno do clássico tema monkiano “Blue Monk”. O engenheiro de som acabou por deixar ‘a fita rolando’, captando essa sessão livre não planejada (e sem que Ivo soubesse). Chegou o fim da hora reservada no estúdio e nada de o outro músico aparecer. Perelman guardou suas coisas para ir embora e o técnico do estúdio avisa que suas ‘variações’ haviam sido captadas. E assim acabou por ser gestado, movido por acasos e improvisos, esse belo disco. São seis faixas: três releituras de “Blue Monk” e três “Variations” livres.

Foi nesse período que Perelman teve a oportunidade de trabalhar com uma das lendas do free jazz: o baterista Rashied Ali. Último músico a entrar em estúdio com John Coltrane, Ali foi um dos mais criativos e radicais instrumentistas a surgir no tumultuado 60s. Conta o saxofonista que trombava com Rashied pelas ruas e bares do Brooklyn novaiorquino, de bermuda e chinelo, e um dia resolveu conversar com ele. O resultado desse encontro foram dois dos mais importantes trabalhos de Ivo: no formato de trio, que ainda contou com a colaboração de William Parker, brotaram “Sad Life” e “Live”.

Captado na noite de 19 de junho de 1996, no Knitting Factory, em Nova York, Live, como “Blue Monk Variations”, não foi programado para existir: foi alguém do público que resolveu gravar a apresentação e depois ofereceu o tape aos músicos: o resultado são 47:21 minutos de improvisação ininterrupta. É curioso notar que a gravação começa meio que do nada, após os músicos já terem iniciado o show. De qualquer forma, o material é fundamental e se tornou um dos poucos registros ao vivo do saxofonista. O disco, lançado pelo obscuro selo Zero In, está fora de catálogo há um bom tempo e dificilmente voltará às prateleiras.

A partir de 96, a discografia do saxofonista seguiu crescendo exponencialmente e sendo recheada de figuras de ponta da cena free jazzística: no piano: Matthew Shipp, Marilyn Crispell, Paul Bley e Borah Bergman; no baixo: William Parker, Wilber Morris, Fred Hopkins e Dominic Duval; na bateria: Rashied Ali, Andrew Cyrille, Gerry Hemingway e Jay Rosen.

Nos últimos anos, Perelman entrou em uma fase em que passou a dar ênfase ao diálogo com cordas, decisão que trouxe outro colorido a seu sopro. Em 98, ele havia gravado The Alexander Suite, junto a um quarteto de cordas. Mas, naquele momento, o resultado foi muito diferente do obtido na década seguinte. A sonoridade do “C.T. String Quartet” era altamente densa, marcada por ataques no melhor ‘estilo Penderecki’. A etapa com cordas recente, nascida das parcerias com o baixista Dominic Duval, apresenta um corpo distinto, mais etéreo e fluido. Essa fase começou com Introspection, de 2006 (com a violinista Rosie Hertlein), e se estendeu por Soul Calling, New Begginings, Nowhere to Hide (os três em duo com Duval) e os recém-lançados Soulstorm e Near to the Wild Heart. Segundo Perelman, esse ciclo já se completou.



O que vemos agora é o músico em nova etapa. Um pouco dessa sonoridade do momento pode ser apreciada nos dois duos com bateristas (The Stream of Life e The Apple In The Dark) lançados há poucos meses. O quarteto que se apresentará hoje demarca esse momento atual, com o retorno do trabalho com bateria e piano. Paralelamente a esse grupo, Perelman formou um novo trio em NY, com o baixista Reggie Workman e o baterista Andrew Cyrille.



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No Brasil, a distribuição dos discos de Perelman não é muita extensa, contemplando apenas uma pequena parcela de seus títulos.
Quase tudo que está disponível nas pratelerias locais saiu pela Atração Fonográfica. São esses os títulos (a R$ 28,90 cada no site da gravadora):

*En Adir (1996)
*Sad Life (1996)
*The Alexander Suite (1998)
*Aquarela Brasileira (1999)
*Sieiro (1999)
*The Ventriloquist (2002)

Há ainda o duplo “The Complete Ibeji Sessions”, lançado pela Editio Princeps, que reúne os discos Soccer Land (94) e Tapeba Songs (95).

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Um pouco mais sobre Ivo Perelman (que também é pintor) pode ser encontrado em seu site:
http://www.ivoperelman.com/

*parte desse texto apareceu no post de estreia deste espaço, “A música livre de Ivo Perelman”
*as pinturas acima são de Perelman



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