O ANJO DESOLADO
Música e outras coisas

O ANJO DESOLADO




Milton Aubrey Moore Jr. é o autor de uma frase verdadeiramente lapidar: “qualquer um que não toque como Pres está errado”. Mas e quem é Milton Aubrey Moore Jr. e donde há de vir a autoridade para formular uma afirmação tão veemente? Decerto, Brew – apelido recebido na adolescência – não é o saxofonista mais famoso do jazz. Na verdade, ele é bem pouco conhecido – o que é uma tremenda injustiça com um dos mais aplicados e talentosos discípulos de Lester “Pres” Young. Para tentar tirá-lo um pouco da imerecida obscuridade em que se encontra, conheçamos um pouco mais sobre sua vida e sua obra.

Nascido no dia 26 de março de 1924, em Indianola, Mississippi, aos sete anos já demonstrava habilidade musical, ao tocar, de maneira autodidata, harmônica. Aos doze anos, na própria cidade natal, começaria os estudos musicais formais e seu primeiro instrumento foi o trombone, logo trocado pela clarineta. Após ouvir o sempiterno Lester Young e o seu sopro aveludado, decidiu aprender saxofone tenor. A influência de Pres era tamanha que até a maneira de segurar o saxofone, inclinado e quase que na posição horizontal, Brew tomava emprestado do ídolo.

Em pouco tempo, ingressou na orquestra da escola e antes de concluir o colegial já tocava profissionalmente nos clubes de Indianola. Concluído o ensino médio, ingressou na Mississippi University, no curso de música. Permaneceu na universidade por apenas um semestre e foi obrigado a trancar o curso, a fim de dar seguimento à carreira profissional. Em 1942 chegou em New Orleans, onde foi logo contratado pela “Fred Ford’s Dixielanders”, uma orquestra de jazz tradicional da cidade.

Moore passaria os próximos seis anos dividido entre New Orleans e Memphis, tocando exaustivamente em bandas e orquestras locais de pouca notoriedade, como a de Will Stomp. Em 1948 estabeleceu-se em Nova Iorque, onde despertou interesse na cena local, pela excelência do seu fraseado e pela sutileza com que manejava o saxofone. Nessa época, Lester Young já não estava mais sozinho no panteão de seus ídolos.

Em uma entrevista a John Wilson, então crítico do New York Times, Moore confessou: “Quando ouvi Parker pela primeira vez e vi como ele, praticamente sozinho, havia feito uma revolução na música, percebi que Lester Young não era o único Messias. Assim, passei a combinar elementos de Bird e de Pres ao meu próprio estilo”. Com referências tão venturosas, Moore foi galgando degraus na cena novaiorquina e montando seus próprios pequenos grupos.

Na Grande Maçã, acompanhou músicos da estatura de Elliot Lawrence, Kai Winding, Gerry Mulligan, Slim Gaillard, Machito, George Wallington, Gene Williams, Zoot Sims, J. J. Johnson, Chuck Wayne, Red Rodney, Miles Davis e Howard McGhee, ao lado de quem faria a sua primeira gravação. Um dos momentos mais memoráveis de sua carreira até então foi a participação no álbum “Brothers and Other Mothers”, ao lado de três dos célebres “brothers” da orquestra de Woody Herman – Stan Getz, Al Cohn e Zoot Sims – e de Alan Eager. O disco foi lançado em 1949, pela Savoy.

Tocando em clubes como o Limelight, o Birdland, o Royal Roost e o Village Vanguard, Moore chegou a dividir o palco com o ídolo Charlie Parker em várias oportunidades, inclusive em uma excursão ao Canadá, em maio de 1953. Acompanhando os dois, estavam o guitarrista Dick Garcia, o contrabaixista Neil Michel, o baterista Ted Pastor e um jovem pianista canadense chamado Paul Bley, de apenas 21 anos.

Alguns dos melhores amigos de Moore naquela época eram os ultraboêmios Red Rodney e Zoot Sims. Sobre a relação entre Zoot e Brew, dois notórios apreciadores das propriedades inebriantes do álcool, o baixista Bill Crow nos conta, no seu livro “Jazz Anedoctes”, que certa feita, Zoot, completamente embriagado, derrubou o seu saxofone de uma escada e o instrumento ficou imprestável. Como tinha uma apresentação no Onyx Clube, Sims pediu ao amigo Moore que lhe emprestasse o seu próprio saxofone.

Meio relutante, Brew cedeu aos apelos e emprestou o instrumento ao amigo. Logo no início do concerto, Zoot perdeu o equilíbrio e desabou no chão, enquanto um estupefato Moore assistia, impotente, à patética cena. Por sorte, conseguiu segurar o saxofone acima da cabeça e não deixou que o instrumento sofresse qualquer avaria. Após a queda, o ressabiado Zoot devolveu o instrumento ao dono e, envergonhado com o mico, foi embora do clube sem concluir o show.

No início dos anos 50, Brew passou cerca de seis meses na orquestra de Claude Thornhill, mas a estridência do formato orquestral lhe causava um certo desconforto. Com efeito, o saxofonista preferia atuar em pequenos grupos, geralmente quartetos ou quintetos, e nesse formato acolheu, em 1951, o jovem pianista Mose Allison, então em início de carreira. Pelos grupos de Moore passaram músicos talentosos, como o baixista Bill Crow, os trompetistas John Carisi e Tony Fruscella e o pianista Gene DiNovi.

Co-liderou um sexteto ao lado do amigo Gerry Mulligan, que se apresentava com regularidade no Birdland. Outro jovem pianista em início de carreira, chamado Horace Silver e careta até a raiz do cabelo, chegou a tocar algumas vezes com a banda, mas ficou muito mal impressionado com a dupla de saxofonistas. Segundo ele: “Naquela época, Gerry e Brew curtiam um lance beatnik. Andavam de cabelo comprido e de barba por fazer e suas roupas eram horrorosas”.

O descuido da dupla com a própria aparência fez com que o Oscar Goodstein, proprietário do clube, lhes desse um ultimato: ou cortavam o cabelo e usavam terno e gravata ou nem precisavam aparecer para tocar na noite seguinte. Os dois rebeldes, temendo por seus empregos, cortaram as respectivas jubas e apresentaram-se ao patrão devidamente barbeados e engravatados, para alívio do “certinho” Silver.

Em 1954 o saxofonista decidiu tentar a sorte na Costa Oeste e se fixou em San Francisco. Reza a lenda que Moore e alguns conhecidos – Billy Faier, Jack Elliott e Woody Guthrie, todos músicos ligados ao estilo country – começaram a viagem em um velho Buick 1949, de propriedade de Faier, e resolveram parar em um restaurante na estrada. Animados após algumas cervejas, decidiram tocar alguma coisa para os clientes que estavam no local.

Brew se recusou a tocar, alegando que seu estilo não combinava com o dos companheiros, mas acabou cedendo. Billy Faier propôs que tocassem um blues e assim foi feito – Brew mandou ver em uma interpretação nada ortodoxa do blues. Guthrie, indignado com o que ouvia, recusou-se a continuar a viagem com aquele sujeito que havia ousado profanar o sacrossanto blues e Moore teve que continuar a viagem de ônibus.

Afora os percalços da viagem, a estimulante cena californiana fez bem ao saxofonista, que conseguiu alguma notoriedade e chegou a participar de concertos e gravações ao lado do vibrafonista Cal Tjader, dos pianistas Cedric Haywood e Sonny Clark, dos baixistas Al Mckibbon e Ron Crotty, e de uma banda de dixieland comandada por Bob Meilke.

Liderando seus próprios quartetos e quintetos em clubes como o Black Hawk, Moore chamou a atenção da gravadora Fantasy. Seu primeiro disco como líder, “The Brew Moore Quintet”, foi gravado em duas sessões, nos dias 15 de janeiro e 22 de fevereiro de 1956, no Marines Memorial Hall – uma das faixas, “Fools Rush In (Where Angels Fear To Tread)”, foi extraída de um concerto realizado na University Of California, em agosto de 1955.

Acompanham o saxofonista quatro músicos virtualmente desconhecidos: John Marabuto (pianista e colega de Moore no grupo de Tjader), Max Hartstein (contrabaixista que chegou a tocar com Conte Candoli), Gus Gustofson (baterista e mais experiente dos quatro, que já havia tocado com Woody Herman, Gerald Wilson, Georgie Auld e Nat Pierce) e o trompetista Dickie Mills, que participa de apenas quatro das nove faixas.

De cara, o quarteto – Mills não participa – abre os trabalhos com uma explosiva versão de “Them There Eyes”, cheia de energia e vivacidade. A abordagem do grupo é mais próxima do bebop novaiorquino do que do chamado West Coast Jazz. O baterista Gustofson é dinâmico ao extremo e os outros integrantes da sessão rítmica atuam com enorme desenvoltura. A sonoridade de Moore, robusta e envolvente, se impõe com um swing contagiante.

O pianista assina “Them Old Blues” e paga tributo a Duke Ellington, com uma execução econômica e classuda a não mais poder. A influência de Lester Young se revela por inteiro no trabalho de Moore, cujo fraseado é, a um só tempo, tranqüilo e cadenciado, impregnado de blues. Mills é ágil e bastante criativo, com um sopro viril e cheio de entusiasmo, no melhor estilo dos irmãos Candoli ou de Shorty Rogers. Sempre muito bem postado, Hartstein é a segurança em pessoa.

O antigo tema “Tea For Two”, de Vincent Youmans, ganha um arranjo despojado, que realça as suas qualidades melódicas. Moore demonstra uma enorme capacidade de concatenar frases musicais, sempre de maneira surpreendente e seus improvisos se caracterizam pela complexidade e pela inteligência. O ritmo, ditado por um inspirado Gustofson, torna essa pequena jóia musical ainda mais irresistível.

Mostrando ser um compositor versátil, Marabuto é o responsável pela sacolejante “Rose”, na qual navega pelas agitadas águas do hard bop com a tranqüilidade de um veterano. Moore e Mills, exuberantes, mostram um belíssimo entrosamento, dialogando em alto nível técnico. Destaque para o trabalho mais do que eficiente do baterista, com o seu timing impecável, e para o piano percussivo de Marabuto – que ainda contribuiria com a animada “Five Planets In Leo”, que fecha o disco em clima de jam session.

“I Can't Believe That You're In Love With Me” remete a Parker, outra influência bastante cara a Moore. Fluente e inventivo, o saxofonista constrói frases muito bem articuladas, em clima de total relaxamento. Grandes momentos de Marabuto, que se apresenta aqui como um aplicado seguidor das serpenteantes harmonias de Bud Powell, e do infalível Gustofson.

A versão de “Fools Rush In (Where Angels Fear To Tread)”, de Johnny Mercer e Rube Bloom, é de um transbordante lirismo e denota a fabulosa sensibilidade do quarteto – aqui também Mills não participa. A sonoridade encorpada do saxofone do líder e sua notável aptidão para executar baladas cativam o ouvinte desde os primeiros acordes e o acompanhamento, de uma simplicidade quase monástica, é charme em estado puro.

“Rotation” é a mais west coaster das faixas do disco e apresenta Moore e Mills, autor do tema, em uma completa comunhão. Os diálogos entre saxofone e trompete são dos mais estimulantes, e seus solos congregam técnica apurada e vigor físico incomum. Com sua leve tintura de blues e sua atmosfera ensolarada, o tema dá espaço para que Marabuto fique à vontade, revelndo-se um músico dos mais consistentes, seja como acompanhante, seja como solista.

O sopro cálido e aveludado de Moore faz de “I Want A Little Girl” um dos pontos altos do disco. Lesteriana por excelência, sua abordagem reverencia o antigo mestre e descortina um intérprete maduro e de elevado bom gosto. A sessão rítmica é discreta e ajuda a fazer da audição uma experiência memorável.

A discografia de Moore é bastante diminuta. Além de dois álbuns para a Fantasy nos anos 50, ele gravou apenas para pequenos selos, como Savoy, Jazz Mark, Debut, SteepleChase, Sonet e Storyville, e boa parte de seus discos como líder está fora de catálogo. “The Brew Moore Quintet”, lançado em cd pela Original Jazz Classic e facilmente encontrado nas boas lojas virtuais do ramo, é uma excelente oportunidade de conhecer o trabalho desse esplêndido saxofonista.

Em 1959, Moore esteve afastado dos palcos e estúdios por causa de problemas com o álcool. No ano seguinte, exceção feita a uma breve turnê pela Ásia e Oriente Médio, nada de muito significativo aconteceu em sua carreira. Desencantado com a cena musical norte-americana, resolveu trocar os Estados Unidos pela Europa, em 1961, engrossando as fileiras de músicos de jazz – Benny Bailey, Coleman Hawkins, Art Taylor, Chet Baker, Benny Carter, Bud Powell, Horace Parlan, Kenny Clarke, Dexter Gordon, Oscar Pettiford, Teddy Wilson e Stan Getz, por exemplo – que fizeram essa opção nas décadas de 50 e 60.

Estabelecendo-se em Copenhagen, Dinamarca, o saxofonista pôde desfrutar de um reconhecimento inédito em seu próprio país. Apresentava-se em clubes e festivais com regularidade, tendo a seu lado outros conterrâneos ilustres, como Kenny Drew, Sahib Shihab, Don Byas, Herb Geller e Ben Webster e também com músicos escandinavos, como Niels-Henning Ørsted Pedersen, Rolf Ericson, Alex Riel, Lars Gullin, Atli Bjorn e William Schiopffe.

Morou algum tempo em Estocolmo, na Suécia, e nas Ilhas Canárias, e retornou aos Estados Unidos em 1967, permanecendo em Nova Iorque até 1970. Durante esse período participou do álbum “Body And Soul” (Atlantic, 1969), sob a liderança de Ray Nance. Voltou à Europa em 1970 e, novamente, fixou residência em Copenhagen, onde montou um novo quarteto com músicos locais (o pianista Lam Sjostens, o baixista Sture Norden e o baterista Frank Noren). Naquela cidade, viria a falecer estupidamente, no dia 19 de março de 1973, após cair de uma escada em sua própria casa, em Tivoli Gardens.

O destino não poderia ter sido mais irônico. Após anos de penúria, Moore havia recebido uma polpuda herança, deixada por seu padrasto, e havia feito uma festa para comemorar a boa notícia – da herança, não da morte do padrasto – em um clube local. Chegando em casa e com muitas doses a mais, o saxofonista escorregou ao tentar subir uma escada e fraturou o pescoço, falecendo a caminho do hospital. Na semana seguinte completaria 49 anos e – boêmio incurável e rico pela primeira vez na vida – certamente daria outra festa.

Descrito por gente como o pianista Gene DiNovi como “uma pessoa simples e adorável”, Moore costumava dizer que o músico deveria tocar seu instrumento com a mesma naturalidade que uma criança faria. O escritor Jack Kerouac dedicou-lhe algumas palavras em seu romance “Desolation Angels”, de 1965: “Brew Moore está tocando o sax tenor... e ele toca com perfeição qualquer tema que lhe apresentem – ele não presta atenção a ninguém, apenas bebe a sua cerveja. Ele nunca erra uma nota ou perde um compasso, porque a música está em seu coração e na música ele encontrou a mensagem pura que deseja passar ao mundo”.

========================




loading...

- RomÂnticos SÃo Lindos E Pirados
Histórias engraçadas ou pitorescas envolvendo músicos de jazz são bastante comuns. Muitas delas podem ser lidas no bem-humorado “Jazz Anecdotes”, do baixista Bill Crow, um sujeito boa-praça que tocava um contrabaixo finíssimo e que pode ser...

- Onde EstÁ A MÚsica?
  Os modos gentis e o temperamento cordato renderam a Kai Winding o apelido de “O cavalheiro do jazz”. Mas esse dinamarquês que fez carreira nos Estados Unidos e foi uma das figuras mais importantes da primeira geração do bebop era mais...

- A Marca Do Zorro, Digo, Do Zoot!
John Haley Sims, o último de uma numerosa prole de sete irmãos, nasceu no dia 29 de outubro de 1925, na cidade de Inglewood, Califórnia. Sua família era ligada ao vaudeville – seus pais eram dançarinos – e logo o garoto começou a demonstrar...

- O Saxofone AcadÊmico De Gerry Mulligan
Fosse um pintor e Gerry Mulligan estaria mais para o academicismo exuberante de um Rembrandt que para o vanguardismo abstracionista de um Jackson Pollock. Como o autor de “A lição de Anatomia do Dr. Tulp”, também Mulligan viveu uma sucessão de...

- David S. Ware: O Início
David S. Ware talvez seja o maior saxofonista em atividade. Pouco conhecido do grande público (e não só por aqui), Ware liderou um quarteto nos anos 90 que ofereceu alguns dos mais impressionantes momentos sonoros da história recente. Se as baquetas...



Música e outras coisas








.