NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS
Música e outras coisas

NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS



Há um certo consenso entre a crítica, de que os mais influentes saxofonistas do jazz foram, em uma ordem cronológica razoavelmente precisa, Coleman Hawkins, Lester Young, Charlie Parker, John Coltrane e Sonny Rollins. Hawkins deu ao saxofone, até então relegado a mero acompanhante nas bandas e orquestras, o status de instrumento da linha de frente do jazz. Young adicionou doçura e lirismo ao sax jazzístico e, com seu fraseado sensível, sugeriu os caminhos que, mais tarde, seriam desbravados pelos músicos da escola cool. Parker, talvez o maior de todos, promoveu a revolução do bebop, criando uma linguagem harmônico-melódica toda peculiar e inovadora. Coltrane sintetizou a influência de todos os seus antecessores e apontou os caminhos para o futuro do saxofone jazzístico, levando as possibilidades harmônicas do instrumento até as fronteiras da Via Láctea. E Rollins?

Theodore Walter “Sonny” Rollins foi, é e será sempre uma força da natureza, o músico que simboliza o total abandono às coisas materiais para se dedicar – única e exclusivamente – ao aperfeiçoamento de sua arte. Não é à toa que tenha passado quase dois anos sem gravar ou se apresentar em público, apenas praticando e desenvolvendo seu toque, sob os olhares incrédulos dos que passavam pela ponte do Brooklyn, onde costumava se recolher para ensaiar. Sua relação com o saxofone se constrói em um plano espiritual, onde homem e instrumento se integram de forma tão estreita que acabam por se tornar uma coisa só. Seu fraseado incisivo é de uma virilidade incomum e seus solos conjugam força física, inteligência, habilidade técnica, inventividade, bom humor e velocidade.

Além da competência como músico, o talento superlativo de Sonny como compositor legou ao jazz canções imortais como “St. Thomas”, “Airegin”, “Doxi” e “Oleo”. O homem é um monstro e até hoje mantém-se ativo, com uma concorrida agenda de shows, apresentando-se em palcos do mundo inteiro. Seu disco “Saxophone Colossus”, de 1956, é uma obra-prima, presente em qualquer lista dos 10 álbuns mais importantes da história do jazz. Consagrou-se como músico ligado às escolas bebop e hard-bop, mas também flertou com o pop, o free jazz e a música oriental – sempre mantendo intacta a sua integridade artística.

Em março de 1957 gravou para a Contemporary um de seus discos mais interessantes – ainda que não tão conhecido quanto os incensados “Saxophone Colossus” e “The Bridge” – chamado “Way Out West”. A capa é um exemplo do humor sardônico do saxofonista: um Sonny Rollins vestido a caráter, em uma paisagem típica do oeste americano, se prepara para enfrentar sabe-se lá que perigos com o seu impávido saxofone. A foto é de autoria de William Claxton, célebre por fotografar grandes nomes do jazz. O repertório inclui canções com uma temática, digamos, “rural”: “I'm an Old Cowhand” (Mercer), “Wagon Wheels” (DeRose/Hill) e a própria “Way Out West”, composta por Rollins especialmente para a ocasião.

Gravado na Califórnia, Sonny dispensou o piano e convocou dois dos maiores expoentes do West Coast para acompanhá-lo: o baixista Ray Brown e o baterista Shelly Manne. A fim de compatibilizar as agendas dos músicos, as gravações foram realizadas às três da manhã, o que não causou qualquer problema, pois nesse horário o excêntrico saxofonista estava mais “quente” que nunca. E olha que calor foi o que não faltou àquelas sessões. Um dos (muitos) pontos altos do disco é “Come, Gone”, bebop de autoria de Rollins, na qual este exibe seu fraseado energético e dá um show de irreverência, versatilidade e improvisação, fazendo citações a outras músicas, como “Perdido”, sem perder o prumo.

Apesar do pouco tempo disponível para ensaiar, o trio toca com uma coesão e um swing impressionantes e boa parte do sucesso do disco se deve à excelência da sessão rítmica. Em “I'm an Old Cowhand” e em “Wagon Wheels”, por exemplo, percebe-se em algumas passagens uma discreta pincelada de reggae (isso bem antes do estilo ser inventado), com destaque para a soberba linha de baixo. A balada “There Is No Greater Love” ganha uma roupagem moderna, sem perder a emotividade, e a icônica “Solitude” merece uma versão à altura daquela imortalizada por Lady Day, com Sonny mostrando que também pode soar lírico e pungente, tanto quanto um Lester Young.

A despeito da eletricidade que percorre todas as faixas, a atmosfera do disco é bastante relaxada e despretensiosa. Nada de experimentalismos, nada de invencionices, nada de dilemas estéticos. São apenas três caras tocando e se divertindo – dividindo com o ouvinte a alegria e o prazer de fazer grande música. A nova edição em CD, remasterizada por Phil De Lancie, traz como brinde três faixas bônus: os takes alternativos de “I'm an Old Cowhand”, “Come, Gone” e “Way Out West”. Sem dúvida, um álbum precioso, fadado a ocupar um lugar de destaque em qualquer discoteca de jazz.



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