ELE É O BOM, É O BOM, É O BOM...
Música e outras coisas

ELE É O BOM, É O BOM, É O BOM...



Quando o saxofonista Scott Hamilton apareceu para o mundo, em meados dos anos 70, o jazz vivia uma série crise de identidade. Se, por um lado, o fusion, que combinava (muitos) elementos do rock com (poucos) elementos do jazz, deu a figuras como Miles Davis, Joe Zawinul, Freddie Hubbard, Donald Byrd ou Wayne Shorter status de pop stars, por outro lado boa parte das obras enquadradas nessa vertente peca por apresentar qualidade artística inversamente proporcional ao talento desses grandes músicos.

Na contramão do fusion, o free jazz ainda conservava uma aura transgressora, rebelde e politizada, semelhante àquela que permeou o nascimento do bebop. Todavia, o estilo mantinha uma sintaxe tão hermética que parecia prescindir da presença do público para existir enquanto expressão artística. Com o free, o jazz mergulhou em um mundo sombrio e deu a impressão de que seus músicos, sempre com a cara enfezada e um ar sisudo, haviam perdido a capacidade de rir de si mesmos, de se divertir.

Antes que Wynton Marsalis viesse, qual um cavaleiro medieval, resgatar a alegria e a espontaneidade do jazz, livrando-o da padronização pasteurizada representada pelo fusion e do experimentalismo autista simbolizado pelo free, Hamilton despontou, sem tanto alarde, nos meios musicais norte-americanos e deixou clara a sua mensagem: “it don’t mean a thing, if it ain’t got that swing”! Ou seja, o jazz significa muito pouco se abolir o swing.

De lá para cá, muita coisa mudou no panorama jazzístico. Os Young Lions dos anos 80, capitaneados por Wynton Marsalis, passaram a dar as cartas e influenciaram dezenas de novos músicos. Abriu-se espaço para neotradicionalistas como Javon Jackson, Brad Mehldau, Mulgrew Miller, Benny Green, Geoff Keezer, Charles Fambrough, Robin Eubanks, Wallace Roney, Terence Blanchard, Eric Alexander, Marcus Roberts, Jesse Davis, Kenny Garrett, Terel Stafford, Ken Peplowski, Antonio Hart, Peter Bernstein, Curtis Lundy, James Carter, Mike LeDonne, Grant Stewart, Francesco Cafiso e incontáveis outros.

Chegando aos quarenta anos de carreira, Scott pode se orgulhar de ter contribuído para consolidar esse panorama alentador, embora a sua importância, infelizmente, ainda não seja devidamente reconhecida. De qualquer forma, ninguém pode tirar-lhe o mérito de ser o principal herdeiro da tradição iniciada por Lester Young e Coleman Hawkins, o que não é pouco.

Hamilton nasceu no dia 12 de setembro de 1954, na cidade de Providence, Rhode Island e sua intimidade com a música se manifestou desde muito cedo. O jazz fazia parte do cotidiano, pois seu pai, um apaixonado pelo swing, dispunha de uma alentada discoteca, essencialmente baseada nas grandes orquestras dos anos 30 e 40. Aos cinco anos recebeu as primeiras lições bateria, aos seis aprendeu alguns rudimentos de piano e aos oito começou os estudos de clarinete, mas somente aos dezesseis passou para o saxofone tenor.

Em pouquíssimo tempo, já fazia parte de orquestras locais de R&B e sua sonoridade rica e encorpada chamou a atenção de ninguém menos que Roy Eldridge. Por indicação do trompetista, Scott foi tentar a sorte em Nova Iorque, em 1976. Um dos seus primeiros empregos ao chegar à cidade foi na banda de Hank Jones, que era atração fixa do Michael’s Pub. Em seguida, trabalhou com Benny Goodman e com as cantoras Anita O’Day e Rosemary Clooney.

Foi naquele período que gravou, pelo pequeno selo Famous Door, o seu primeiro disco como líder, chamado “Swinging Young Scott” (1976), acompanhado pelo trompetista Warren Vaché, pelo pianista John Bunch, pelo contrabaixista Michael Moore e pelo baterista Butch Miles. Embora a repercussão do disco tenha sido branda, seu talento logo despertou a atenção do baterista Jake Hanna, que assistiu a uma apresentação sua no clube Condon’s e ficou extasiado.

Imediatamente, Hanna entrou em contato com Carl Jefferson, fundador da Concord, que não hesitou em contratar o jovem saxofonista. Era 1977 e naquele mesmo ano Scott lançou seu primeiro disco pela gravadora: “Scott Hamilton is A Good Wind Who Is Blowing Us No Ill”. Fã de Ben Webster, Illinois Jacquet, Zoot Sims, Gene Ammons e Eddie “Lockjaw” Davis, Hamilton despejou esse rosário de influências em um álbum coeso e completamente imerso na melhor tradição jazzística, que naquela época parecia estar esquecida.

Contando com uma sessão rítmica das mais experientes, integrada pelo pianista Nat Pierce, pelo baixista Monty Budwig e pelo baterista Jake Hanna, além da participação do trompetista Bill Berry, a estréia não poderia ser mais auspiciosa. O álbum ajudou a resgatar o interesse do mercado pelo jazz acústico e mereceu do crítico Leonard Feather as seguintes palavras: “Em tempos de tanta poluição sonora a nos esmagar, ele é, quase que literalmente, um alívio para os ouvidos doloridos, um bálsamo para desfazer os danos auditivos”.

Não que Hamilton desconhecesse a força criativa de saxofonistas mais modernos, como Sonny Rollins ou John Coltrane. Apenas, a música que esses titãs faziam não se encaixava nas suas próprias concepções musicais. Ele explica: “Eu sempre toquei da maneira como toco agora. Eu escutava Trane, mas nunca ouvi nada que realmente quisesse aproveitar em minha própria forma de tocar. E isso sempre foi algo consciente. Eu jamais pensei em tocar de outra maneira ou em outro estilo”.

Tocar com músicos de gerações anteriores é uma constante na carreira do saxofonista. Além do veterano pianista John Bunch, que integrou um dos seus primeiros quartetos e o acompanhou em seu primeiro disco como líder, Scott pode se orgulhar de parcerias com luminares como Al Cohn, Ruby Braff, Buck Pizzarelli, Woody Herman, Tony Bennett, Gerry Mulligan, Flip Phillips, Maxine Sullivan, Herb Ellis, Buddy Tate, Ray Brown, Jimmy Witherspoon, Vic Dickenson, Jo Jones, Red Norvo e Dave McKenna.

No final dos anos 80 fixou-se em Londres, tornando-se atração constante em clubes locais como o Pizza Express Jazz Club e o Ronnie Scott’s. Também fez parte de inúmeras bandas all-stars, como a Concord Jazz All Stars, a Concord Super Band e a George Wein’s Newport Jazz Festival All Stars. Fez parte da célebre “World's Greatest Jazz Band”, fundada por Dick Gibson, Yank Lawson e Bob Haggart, da qual também fizeram parte, entre outros, Vic Dickenson, Carl Fontana, Bud Freeman, Peanuts Hucko, Ralph Sutton e outros expoentes.

Seu passaporte registra passagens pelos quatro cantos do mundo e incontáveis países: Suécia, Alemanha, Canadá, Portugal, Japão, Escócia, França, Espanha, Itália, Polônia, Suíça e Holanda são apenas alguns deles. Já se apresentou em alguns dos festivais mais importantes do planeta, como Nice, Estoril, Irvine, Angra do Heroísmo, Toronto, Brecon, Northsea, Fujitsu-Concord e JVC Jazz Festival.

O público que acorre a esses espetáculos tende a concordar com o que escreveu o crítico John Barrett Jr., da Jazz Review: “O que eu mais gosto em sua forma de tocar é a sua consistência, sua habilidade para interpretar velhos standards da forma como essas canções foram originalmente concebidas e, ainda assim, apresentar alterações sutis e refrescantes, que as tornam novas outra vez”.

No início da carreira Scott teve sérios problemas com o álcool, que quase comprometeram o seu sucesso profissional. Felizmente, em 1982, ele deixou a bebida e conseguiu manter as rédeas da vida e da carreira. Em sua longa e frutífera associação com a Concord, ele já atuou em quase 100 gravações, seja como líder, seja como acompanhante. Nessa condição, atuou em álbuns de gente como Ed Bickert, Susannah McCorkle, Ken Peplowski, Cal Tjader, Charlie Byrd, Gene Harris, Gerry Mulligan e Ernestine Anderson.

Como líder, é bastante difícil escolher apenas um de seus discos, tamanha a qualidade do material que ele, habitualmente, produz. Mas existe um disco tão encantador que, dificilmente, os fãs de Hamilton deixarão de incluir entre as melhores coisas feitas pelo saxofonista. Trata-se de “After Hours”, gravado nos dias 18 e 19 de dezembro de 1996, no estúdio Sound On Sound, em Nova Iorque, com produção de John Burk.

Mais uma vez, Scott se encontra à frente de um quarteto, formação que parece preferir a qualquer outra. Seus acompanhantes são ninguém menos que os fabulosos Tommy Flanagan no piano, Bob Cranshaw no contrabaixo e Lewis Nash na bateria, uma sessão rítmica de sonho. Com uma sessão rítmica dessa, seria difícil para um músico apenas mediano ter uma performance ruim. Quando o líder é um gigante em seu instrumento, então, o resultado não poderia ser menos que soberbo!

“Beyond the Bluebird” é uma balada de autoria de Flanagan, com uma pegada bluesy cativante. Conjugando a simplicidade do blues com a estética refinada de quem acompanhou Ella Fitzgerald por mais de dez anos, Flanagan exibe uma técnica magistral e a elegância do seu toque encontra no sopro potente e resoluto de Scott um parceiro à altura. O talento descomunal de Nash é o complemento mais que propício a essa verdadeira exibição de gala dos dois titãs.

A adoração de Hamilton pelo swing é mais que conhecida. Mas ele também é um exímio bopper, como se pode perceber na espetacular versão de “Woody' N’ You”, de Dizzy Gillespie. Com um ataque rápido e vigoroso, ele improvisa com avidez e arrojo desconcertantes. Tal como fazia o ídolo Hawkins, Scott serpenteia pelas veredas do jazz moderno com tamanha desenvoltura que parece ter sido um habituée das noitadas no Minton’s Playhouse, nos anos 40. A faixa tem um discretíssimo acento latino, que lhe confere um charme adicional, e mais uma atuação de tirar o fôlego de Nash.

“Blues in My Heart” foi composta por Benny Carter e a interpretação do quarteto é reverente, quase circunspecta. O contrabaixo poderoso de Cranshaw dá um aspecto sombrio ao tema e contrasta com o piano límpido e arisco de Flanagan. Trata-se de um blues em seu estado puro, no qual Scott exibe um fraseado musculoso, gutural e absolutamente imerso na tradição de Coleman Hawkins ou Don Byas.

“Bye Bye Blues” é uma balada em tempo médio de autoria de Dave Bennett, Chauncey Gray, Fred Hamm e Bert Lown. A abertura vibrante e colorida fica a cargo de Nash, que ao longo de todo o tema demonstra uma vitalidade invejável, e logo em seguida os demais instrumentos se integram de maneira bastante harmônica. A melodia é simples e despretensiosa, com os quatro atuando em uma atmosfera de puro relaxamento.

A balada “What's New?” é uma das canções mais espetaculares do repertório de Billie Holiday, tendo sido composta por Johnny Burke e Bob Haggart em 1939. A abordagem do quarteto cria um clima luxuriante e, ao mesmo tempo, opressivo, merecendo atenção a sofisticação harmônica que Flanagan imprime ao tema. O sopro enfumaçado de Hamilton simboliza bem o abandono e o desencanto de que trata a letra da música.

A sacolejante “You're Not the Kind”, de Will Hudson e Irving Mills, teve em Fats Waller um dos seus primeiros intérpretes, mas foi imortalizada por Sarah Vaughan. A abordagem do quarteto é descontraída, alegre e sumamente despojada, merecendo todos os encômios a extraordinária sensibilidade de Hamilton para recriar antigas composições e atingir uma entonação que consegue ser, ao mesmo tempo, surpreendente como exige o verdadeiro jazz e bastante agradável aos ouvidos, sem resvalar nos maneirismos e obviedades do chamado “smooth jazz”.

Com um pezinho no blues, “Black Velvet”, de James Mundy e Al Stillman, é uma balada em tempo médio carregada de lirismo. A sonoridade cheia e calorosa, que é a assinatura do saxofonista, interage em altíssimo nível com o refinamento lírico de Flanagan. Soberbos na sessão rítmica, Cranshaw e Nash parecem se divertir bastante, com direito a solos breves, porém intensos. A destacar, o animadíssimo diálogo entre saxofone e bateria na parte final do tema, ao estilo “pergunta e resposta”.

A bossa nova está presente, na interpretação excitante de “How Am I To Know?”, de autoria de Jack King e da escritora (e letrista bissexta) Dorothy Parker. Arranjo elegante, empatia absoluta entre os músicos, improvisos ousados, excelente senso de tempo e um swing cativante são as características mais evidentes dessa faixa. A atuação do líder é irrepreensível, propiciando ao ouvinte um delicioso banquete sonoro. Destaque também para primoroso o solo de Cranshaw.

“Some Other Spring” é um clássico de Arthur Herzog e Irene Kitchings e também fez parte do repertório de Lady Day. É a mais introspectiva do disco, com direito a uma execução fantasmagórica de Flanagan, cujo dedilhado emula um sussurro. Hamilton realça o clima sombrio, com uma interpretação contida e de elevado conteúdo emocional.

A sonoridade robusta e dinâmica de Hamilton cai como uma luva na crepitante “Steeplechase”, de Charlie Parker. Como era característica primordial em Bird, também Hamilton faz a arte de tocar saxofone parecer a coisa mais simples do mundo. Sua sonoridade ecoa tranqüila, lúdica, despojada, mesmo durante os solos mais complexos. As arrojadas harmonias concebidas por Flanagan e a percussão arrebatadora de Nash são os outros destaques do tema. Um disco para figurar como destaque absoluto em qualquer coleção e, mais importante, para ser ouvido milhares e milhares de vezes.

Em 2005, Hamilton comemorou seu retorno a Nova Iorque em grande estilo, ao se juntar a Bill Charlap, Peter Washington e Kenny Washington, um dos mais prestigiados trios da atualidade, nas gravações de “Back In New York”, também para a Concord. Em 2007 foi eleito o melhor saxofonista da primeira edição do Ronnie Scott’s Jazz Awards. Em fevereiro de 2008 fez uma elogiada série de shows no Lincoln Center, em Nova Iorque.

Com seu bigode e sua indumentária que lembram um dândi, Hamilton já foi comparado a um personagem de seu xará Scott Fitzgerald, que retratou como ninguém a atmosfera irreverente e hedonista dos anos 20. Talvez não seja por acaso que as músicas da época sejam tão caras ao saxofonista, sobre quem o crítico Lloyd Sachs escreveu: “Quanto mais eu ouço esse jovem veterano, mais me convenço de que hoje existem pouquíssimos jazzistas capazes de produzir um som tão admirável”.

Casado com a japonesa Manami, Hamilton tem brindado o ouvinte de jazz com jóias do quilate de “East Of The Sun” (de 1993, cujo repertório foi escolhido pelos leitores da revista japonesa “Swing Journal”), “Organic Duke” (de 1994, onde atua ao lado do organista Mike LeDonne, em um repertório quase que exclusivamente baseado em composições de Duke Ellington) e “On Red Door” (de 1998, um dueto com o guitarrista Bucky Pizzarelli, no qual ambos prestam tributo ao grande Zoot Sims).

Todos esses discos foram lançados pela Concord, mas o saxofonista também tem lançado, nos últimos anos, álbuns pelas pequenas gravadoras Woodville e Arbors. Scott também tem feito parcerias com músicos da nova geração, como o saxofonista inglês Alan Barnes e o pianista italiano Rossano Sportiello. Seu quarteto atual é integrado pelos músicos britânicos John Pearce (piano), Dave Green (contrabaixo) e Steve Brown (bateria).

Por meio das palavras do crítico Dave Gelly, pode-se depreender um pouco da magia que torna a sonoridade de Hamilton tão especial: “Escutar a seqüência de um solo de Scott Hamilton é como ouvir um bom papo em seu fluxo total. Primeiro vem a voz, o som inimitável, depois vem a certeza de seu saxofone tenor, o estilo informal e, finalmente, a fluência incrível e seu comando eloqüente da linguagem do jazz”.

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