A esfinge russa
Música e outras coisas

A esfinge russa


A música de Galina Ivanova Ustvolskaya não desabrochou para o 'Ocidente culto', diferentemente do que ocorreu com a obra de seus conterrâneos e contemporâneos Arvo Part, Alfred Schnitke e Sofia Gubaidulina. Ustvolskaya manteve-se, mantém-se, à margem.

Dona de uma linguagem radical em todos aspectos, Galina Ustvolskaya (1919-2006) permanece obscura até os dias atuais, cerca de duas décadas após a queda do regime soviético. Sua linguagem hermética parece seguir dificilmente digerível para solistas, regentes, orquestras e público. E sua obra resume-se a 21 partituras, que somam cerca de seis horas. Por quê tanta dificuldade para aceitar e apreciar sua música?

Aluna de Dimitri Shostakóvitch, começou a compor na década de 40, ainda sob a influência de seu então mentor. Dizem que desavenças pessoais e afetivas os afastaram e o destino cobrou a fatura: enquanto Shostakóvitch cedeu, recuou, adequou sua criação ao establishment e se tornou o grande nome da URSS stalinista, Galina manteve-se coerente a seus projetos estéticos e acabou no ostracismo, esquecida, ignorada mesmo em seu país. (se tais fatos mais parecem idealismo romântico, basta dedicar um pouco de atenção a Ustvolskaya e Shostakóvitch, ver como a música de cada um ainda é encarada. Prestar atenção ao que criaram. Pensar no que ele representou à URSS, como sua obra é reconhecida e executada hoje pelas orquestras do mundo _inclusive a Osesp. Ouvir Galina, dedicar algum tempo à sua obra. Quem se interessa por madame Ustvolskaya?)

Descobri o nome de Galina Ustvolskaya em um artigo do poeta e crítico Augusto de Campos (“A esfinge musical da Rússia”), escrito em setembro de 1996 e publicado no livro “Música de Invenção” (Ed. Perspectiva, 1998). Levei alguns anos para ouvir pela primeira vez as sonoridades criadas pela ‘esfinge russa’ _e o impacto foi extremo.

Não, Galina não tem nada a ver com free jazz ou improvised music: ela fez música no campo rotulado como erudito, escreveu partituras, que testava no piano, tendo levado muito tempo para vê-las interpretadas em sua plenitude. Mas a radicalidade e a liberdade de Galina ensombra muitos músicos ‘modernos’. Importante notar que Ustvolskaya desenvolveu um estilo próprio de composição, longe tanto das escolas clássicas quanto das vanguardas. Como Stockhausen, Cage e Scelsi, parece muito pouco dever ao avant-garde que a antecedeu. Difícil apontar suas influências, quem ecoa em sua obra. Dodecafonismo, serialismo, música concreta, eletroacústica, minimalista, espectral: as trilhas de Galina não passam por aí. Pode-se apontar em Stravinski um elo que a prende à modernidade russa, tanto pela agressividade sonora quanto pela sombra religiosa. Mas não dá para classificá-la como uma compositora stravinskiana, seria exagerado e limitador.

Apenas na década de 90 o Ocidente começou a descobrir sua sonoridade. Tanto que livros abrangentes e interessantes como “A Música Moderna”, de Paul Griffiths, simplesmente a ignoram. Um de seus principais divulgadores é o pianista russo Oleg Malov, que gravou a integral de sua obra para o selo sueco Megadisc _infelizmente, quase tudo esgotado.

Concisão, repetições, ataques abruptos e espaçamentos silenciosos, estaticidade e contemplação marcam sua obra. Nesse disco, aparecem suas “3 Composições”, de nomes simples (e religiosos) e instrumentação e sonoridades incomuns. Além das “Composições 1, 2 e 3”, estão presentes seus 12 Prelúdios para Piano. Uma miniatura bastante representativa do universo de Ustvolskaya.

Para a Composição 1 - Dona nobis Pacem, de 70/71, a compositora selecionou os extremos do grave da tuba e do agudo do picolo. A eles, somou apenas o piano. Na Composição 2 - Dies Irae, de 72/73, aparecem 8 contrabaixos, uma caixa de 43 x 43 cm e o piano. A Composição 3 - Beneditus qui Venit, de 74/75, traz 4 flautas, 4 fagotes e o (onipresente em sua obra) piano.

“A timbrística contrastante é explorada da maneira mais radical possível, agravada por ataques bruscos dos instrumentos, cachos de sons em regiões incomuns vazados por sopros e pianos pianíssimos”, escreveu Augusto de Campos sobre essas composições. “Aglomerando-se às vezes em quase-canons burlescos, figuras martelantes se chocam, durante todo o desenvolvimento da fuga com imprevisíveis ruminações surdinantes do piano, do flautim e da tuba, para mais adiante serem revisitados por explosões percussivas das caixas e ‘clusters’ contrabaixísticos (Composição 2), até esmorecerem nos sopros e pianíssimos agonizantes da ‘Composição 3”, completou Campos.

Curioso ouvir a própria Galina dizer que sua música seria melhor contemplada e apreciada se fosse executada em uma igreja e não em uma sala de concerto. Galina ainda ocupará seu lugar no panteão dos gênios musicais do século.

tracks:
1. Preludes Nr.1 - 12 (20:14)
2. Composition Nr.1: Dona Nobis Pacem (16:15)
3. Composition Nr.2: Dies Irae (17:13)
4. Composition Nr.3: Benedictus Qui Venit (6:49)

*Oleg Malov: piano, conductor
*The St. Petersburg Soloists
Recorded: jan /1994



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